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Arrested Development - Sociopatia Cómica no Seu Melhor


A família Bluth está em apuros. O patriarca George foi preso por fraude e corrupção, todas as contas foram congeladas, e ninguém na família trabalhou um dia na sua vida. Todos à exceção de Michael, o membro com mais senso comum, que tenta ajudá-los o melhor que pode, por muito que ele não queiram. Acrescentem piadas recorrentes, um narrador humorístico e uma recusa em melhorar, e temos Arrested Development.


A série de Mitchell Hurwitz estreou em 2003, na Fox, para o agrado de todos. Ganhou múltiplos Emmys, mas durou apenas três temporadas, talvez por ser uma série que rompe com muitas das bases das sitcoms, como piadas recorrentes e uma continuidade forte. São aspectos que se adequam a séries em serviços streaming, o que leva a Netflix, anos depois, a adquirir os direitos para criar a quarta e quinta temporadas.



Arrested Development é um exercício em sociopatia cómica. É uma série sobre pessoas egocêntricas que recusam mudar, e cuja vida vai constantemente de mal a pior. O tipo de humor é uma lufada de ar fresco, surgindo dum misto de pena pela infância absurdamente abusiva das personagens e a vontade de vê-los falhar por causa dos seus piores impulsos. Rápido, perspicaz e hilariantemente excessivo, é raro haver um episódio que não cause pelo menos uma gargalhada.


Aliás, o humor característico da série é ainda reforçado pelo guião incrivelmente bem escrito. Ao contrário de muitas sitcoms, embora tenta manter sempre o ponto inicial da série, as consequências de cada episódio vão amontoando e afectando as cenas de episódios posteriores. É como encher um copo gota a gota: eventualmente, tudo o que está amontoado vai transbordar.


A temporada dois é o melhor exemplo possível deste aspecto, com referências inseridas inocuamente no meio da história e o culminar de acções passadas de personagens numa storyline completamente diferente. A escrita é inteligente e apelativa a fãs que vêem a série em sessões de três, quatro episódios, porque a memória de piadas passadas mantém-se fresca, melhorando o impacto quando reaparecem subitamente mais tarde na temporada.



Claro, o guião também tem um elenco de luxo a fazer-lhe justiça. Jason Bateman, Will Arnett, Portia de Rossi, Michael Cera, Jeffrey Tambor, Jessica Walter, entre muitos outros, desempenham perfeitamente uma família que se ama e odeia, a si mesmos ou os outros membros, numa agradável meia-hora de idiotice oriunda do narcisismo e da arrogância de uma família abastada.


A falecida Jessica Walter, para mim, era uma das melhores. No papel da matriarca da família, Lucille Bluth, Walter era perfeita ao encarar uma mulher conservadora, distante, controladora, manipuladora e, ironicamente, uma das pessoas com mais senso comum dos Bluth. Walter, aliás, protagoniza um dos meus momentos favoritos da série, em que, numa cerimónia que premeia os atores do mundo das telenovelas latinas, tenta pedir bebidas a todas as pessoas que encontra. Curiosamente (ou não), todas essas pessoas são colombianas, mexicanas, ou de outro país latino.


Há ainda as temporadas quatro e cinco, produzidas pela Netflix. Embora o formato de streaming adequa-se melhor à série, a mudança para a plataforma teve alguns problemas. Devido à quantidade de tempo entre as temporadas três e quatro, ter todos os membros do elenco juntos foi um problema.



A quarta temporada resolve o assunto ao mantê-los todos afastados uns dos outros, com cada episódio a girar à volta de um membro da família em específico. Embora a segunda metade recompense quem aguente a estranheza da primeira, em ver todos os Bluths separados, a dinâmica da família é perdida por consequência. Ora, se fosse uma série nova em folha, não haveria problema, mas Arrested Development usava a dinâmica disfuncional dos Bluth a seu favor, e era uma das características principais. É uma experiência muito diferente, e cabe ao espectador decidir se é para melhor ou pior.


Por outro lado, a temporada cinco já tentou juntar a família mais vezes, mas Portia de Rossi já se tinha reformada como atriz, perdendo um membro muito importante e a ligação da filha e do marido dela na série com o resto da família. Aliás, parece que ainda havia problemas em juntar toda a gente, e nota-se pelo uso frequente de planos over-the-shoulder e green screen para remediar a situação. É desconcertante de ver, especialmente tendo em mente o uso prático de cenários realistas e o estilo de filmagem mockumentary das primeiras três temporadas. Mais ainda, há perda de continuidade na quinta temporada, um dos principais pontos que destacava a série dos demais.



A crescente predominância do narrador na história nas últimas duas temporadas também deixou-me de pé atrás. É uma boa piada inserir o narrador na história, e tê-lo a tecer comentários sobre o seu sucesso e bondade como se de duas pessoas diferentes se tratassem, mas quando começa a criar storylines inteiras é algo excessivo. Chegou ao ponto de querer saltar essas partes à frente, para poder ver a família de idiotas egoístas, aquilo que me puxou para a série inicialmente.


Arrested Development é uma série única. Tem um humor inteligente, um guião incrível, um elenco fantástico, e uma atenção ao detalhe sem igual para séries de comédia. As primeiras três temporadas são sem dúvida as melhores da obra, por encarar a energia maníaca e humorística que é tão característica desta série. As últimas duas temporadas são as que ficam mais na dúvida: são Arrested Development, isso é certo, mas perderam algo entre a terceira e a quarta. O impedimento de reunir todo o elenco prejudicou irremediavelmente o apelo da série, mas ainda são tragáveis. É uma experiência absurda e hilariante, que recomendo a todos.


Filipe Melo



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