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Community – Remedial Chaos Theory: Uma Análise Crítica



“Só para que saibas, Jeff, agora estás a criar seis linhas temporais diferentes”. Os episódios da série “Community” alternam entre os mais aparentemente normais para um seriado televisivo (apesar de não o serem) e outros mais conceptualmente espetaculares, sendo que ambos desafiam as convenções do cinema e televisão à sua maneira. O episódio que melhor atacou o segundo conceito, na minha opinião, é o terceiro episódio (sim, terceiro, foi lançado como o quarto, mas é o terceiro na verdade, daí aquela piada com os números da porta) da terceira temporada, “Remedial Chaos Theory”. Não é só excelente por proporcionar momentos hilariantes que fazem uma pessoa rir constantemente. Ou por incluir momentos memoráveis para os fãs como quando a Britta fez a dança da pizza, o nascimento das versões malvadas dos suspeitos do costume ou quando o Troy, que traz as pizzas e um sorriso na cara, entra numa casa em chamas e vê os seus amigos num estado hilariantemente lastimável. É um episódio bastante especial, primeiro pelo conceito sci-fi que explora, o de linhas temporais em que mudando um pequeno acontecimento, toda a narrativa se altera de uma forma caótica, o que nos leva ao segundo ponto que me faz crer que este é o melhor episódio. Devido a estas alterações em que uma personagem é afastada da equação, é possível perceber como é que cada elemento do grupo interage um o outro e também perceber quem é cada um, as suas fraquezas e pontos fortes.



Começa de uma forma bastante carinhosa, o Troy e o Abed começam a viver juntos então decidiram fazer um pequeno jantar com os seus amigos para lhes mostrar a nova casa. Quando a Annie e a Britta chegam, é revelado que um tijolo permitia manter a porta da entrada aberta, tijolo esse que permitia os convidados subir sem que ninguém tivesse que descer para abrir a porta do prédio. Assim que chegam todos, começam um jogo de yathzee, apesar de não saberem as regras. É nesse preciso momento que o entregador de piza toca à campainha e alguém tem que descer para ir buscá-las. O Jeff arranja um sistema para evitar que ele seja a pessoa que tem que descer e a cada número do dado é designado uma pessoa que ficará com a tarefa. Começando pelo primeiro cenário:


Sai o número 2

É a Annie quem desce neste cenário. A primeira coisa que se nota são alguns dos elementos que estão destinados a acontecer independentemente do cenário. A Britta vai sempre pôr a música “Roxanne” a dar (a música que estourou com o orçamento da série) e vai ser sempre interrompida pelo Jeff, que está sempre a colocar uma corrente nas atitudes mais divertidas dos seus amigos, por ter medo que isso se reflita na forma como os outros o vêm. A Shirley vai sempre levantar-se para tratar das tartes que estão no forno, pois ela tem dificuldades em interagir com este grupo, por serem tão diferentes dela, e então, a cozinha é a forma que ela melhor tem de se aproximar deles. O Pierce vai sempre referir que teve relações com a Eartha Kitt (cantora que deu a voz a Yzma na versão original “Pacha e o Imperador”), porque ele nota que começa a ser visto como o alvo de chacota do grupo e acha que o grupo o achará mais viril ou superior se referir conquistas sexuais espantosas (quer sejam reais ou não), algo que homens da geração dele veriam como sinal de respeito. A Britta, face à interrupção de Jeff, irá sempre para a casa-de-banho para fumar um charro, onde pode relaxar um bocado. Estar sempre a ser “atacada” pelo grupo e sob o seu escrutínio, aliado aos sentimentos de ódio direcionados a ela mesma, fazem-na querer escapar dali e usa a droga como meio de fuga (ah, mas é assim que nasce a dança da piza, por isso nem tudo é mau). O Jeff irá sempre levantar-se para ir buscar uma bebida, algo que o ajuda a reprimir as suas emoções, e eventualmente bate com a cabeça na ventoinha. Isto fará sempre o Troy e o Pierce rir-se. O primeiro porque vê aquilo como uma pequena vingança pelas tentativas constantes do Jeff de tentar inferiorizar o Troy para se sentir superior. O segundo também vê aquilo como uma pequena vingança, mas pelo facto do Jeff rejeitar constantemente as suas tentativas de camaradagem. Ele sente que se aproximar do Jeff, que é o que todos vêm como líder, também ele será como um líder no grupo. O Abed é o que melhor funciona, apesar dos seus comentários meta o fazerem parecer o mais esquisito no grupo, na verdade é o que mais em paz está com o mundo. É maioritariamente um agente passivo da ação. Como amante de cinema e televisão, ele está mais habituado a assistir do que a atuar. A ausência da Annie não provocou grandes animosidades no grupo, mas quando a sua vontade perfeccionista de fazer com que corra tudo bem e necessidade de ver todos felizes é retirada, há uma dificuldade em conseguirem olhar para as melhores partes, no entanto, não são criados grandes conflitos. E ela tem uma pistola. Isso é capaz de ser importante de referir. Portanto, a Annie não tem um grande impacto no grupo. O facto de todos a verem ainda como uma criança e não lhe darem alguma capacidade de decisão (como um adulto normal tem), faz com que ela não tenha muito controlo naquilo que lhes ocorre.


Saiu o número 4

É a Shirley quem desce neste cenário. Antes de descer, pede que alguém se lembre de retirar as tartes dela do forno. O primeiro elemento constante, que foi impedido de ocorrer na primeira jogada, é a prenda de Pierce a Troy. Oferece-lhe um troll tradicional norueguês que aparentemente, colocava à frente do quarto de Troy quando ambos viviam na mansão de Pierce. É um prenda maliciosa, visto que Troy odeia o troll mas Pierce ná mesma porque a saída de Troy fomentou ainda mais a ideia de que ele afasta todos. Pierce nota que eventualmente as pessoas que lhe são mais próximas se afastam e em vez de tentar perceber o que é que nele provoca isso, ele ataca os outros como forma de evitar o processo emocional que é a compreensão dos nossos males. Quando Jeff bate com a cabeça na ventoinha, Annie, instintivamente, afirma que o melhor é ela ver se está tudo bem. A grande motivação dela é a sua atração por Jeff. Ele é mais velho, parece que tem a sua vida no lugar, e os seus aspetos negativos são o tipo de coisas que ela sente que conseguirá mudar para melhor. Jeff não se importa com isto pois ele sente-se atraído por Annie. Shirley é muitas vezes vista como a figura maternal do grupo, apesar de muitas vezes eles atuarem como se o Jeff e a Britta fossem, respetivamente, o seu pai e sua mãe, Shirley é que realmente tem os instintos mais maternais. Na sua ausência, eles perdem-se nas suas discussões e esquecem-se das suas responsabilidades, neste caso, tirar as tartes do forno. Isto faz com que Shirley se chateie com o grupo e mostre as suas inseguranças, porque apesar de ela ser uma mulher casada, o facto de estarem todos sempre a trocar olhares cheios de tensão sexual, é algo bastante irritante pois fá-la relembrar-se de como todos a vêm como uma mãe e como muito mais velha (apesar de ter a mesma idade que o Jeff). Para além disso, o Pierce diz que a ele também ninguém faz olhinhos e por isso são iguais, algo que a deixa visivelmente chateada pois, mesmo ela, sendo a pessoa com mais maturidade no grupo, também não consegue respeitar o Pierce por causa de todas as coisas ridículas e comentários desnecessários que fez.

Saiu o número 3

É o Pierce quem desce neste cenário. Sem o Pierce no grupo, o Jeff e a Shirley são as pessoas mais velhas do grupo. No meio do pessoal mais novo e do Jeff, e ao reparar que andam todos a fazer olhinhos mais uma vez, Shirley afasta-se para continuar a atividade que melhor a faz aproximar-se dos outros, a cozinha. Com o Abed a indicar à casa-de-banho a Britta, Jeff é o mais velho na mesa e a sua insegurança começa a ser notória. Assim, ele implica com Troy, fazendo-o parecer como altamente infantil para que ele mesmo não se sinta “o Pierce” naquele momento, o que faz o Troy sair da mesa, dando espaço para alguma intimidade entre Jeff e Annie. Entretanto, Troy entra na casa-de-banho e tem uma conversa profunda com Britta. Ao ver um lado mais emocional de Troy, ela não consegue deixar de se sentir atraída por ele. Ela tem uma baixa auto-estima (provavelmente por causa do incidente com o homem vestido de dinossauro na sua infância) e por isso, só se sente digna de homens que estejam quebrados. Sente que ninguém normal iria querer algo com ela porque ela mesma não consegue encontrar razões para gostar de si, então os únicos homens que poderiam querer algo dela são aqueles que também estão quebrados, daí que um pequeno elogio a desarme por completo. Por outro lado, Troy está a ver um lado de Britta que o faz gostar ainda mais dela. Ele já sentia alguma atração mais do que física por ela, pela sua aparente paixão por fazer o bem, mas ela conseguiu reconfortá-lo, e mostrar-se como alguém forte que sabe o que dizer, o que faz desbloquear algo em Troy que lhe permite ter a vontade de querer avançar na relação entre os dois. Na ausência de Pierce, as coisas decorrem bastante bem, o que demonstra que muitas vezes ele puxa o grupo para trás com o seu pensamento retrógrado. Na verdade, o grupo já faz imensas coisas sem ele e sem terem que estar preocupados com o que Pierce dirá e que os fará ter que parar as suas atividades para os repreender. A razão pela qual ele tem a necessidade de ser tão despropositado é a exclusão constante por parte dos outros elementos do grupo e inicia-se um círculo vicioso difícil de quebrar. A sua ausência também faz sobressair o pior em Jeff.


Saiu o número 6

É a Britta quem desce neste cenário. Assim, eles perdem o elemento que mais facilmente se torna no alvo de chacota. Sem Britta (cuja baixa auto-estima a faz fazer tudo aquilo que lhe vai na cabeça na esperança de que os outros a consigam ver de uma forma mais positiva) para lhes proporcionar uma gargalhada, ninguém sabe bem como iniciar uma conversa. O Troy, que é uma pessoa alegre, tenta elevar o humor exprimindo o quanto gosta deles, só para ser interrompido abruptamente por Jeff. Quando o Troy vê Jeff a bater com a cabeça na ventoinha, nesta vez dá para reparar o quão alto ele se ri, especialmente por ter sido “atacado” tão rapidamente por Jeff. Desta vez sem a Britta na casa-de-banho, Jeff e Annie estão mais isolados e podem quebrar mais facilmente a tensão entre os dois. Mas o Pierce ficou sozinho com o Abed e o Troy e ao vê-los a darem-se tão bem e a ter a relação que ele adoraria ter com o Troy, fica dominado pela cólera e aterroriza o Troy com o troll até que se refira ao Abed (que mais uma vez é um espectador em toda a situação) como “sozinho e doido”. Todos sabem que o Pierce acabou de dizer o que ele acha de si mesmo e tanto tenta esconder dos outros (da mesma forma que o Jeff esconde algo como os utensílios da casa-de-banho num cofre que a Britta tão bem comparou metaforicamente com a personalidade de Jeff). Quando a Britta regressa, ela diz que está apaixonada pelo entregador de piza, um homem que ela não conhece e que tem um mau aspeto aos olhos do grupo (todos, com exceção da Britta, referem isso nas outras linhas temporais). É o tipo de homem que ela se acha merecedora de. Na sua ausência, as coisas rapidamente tornaram-se hostis, pois ela, tal como Jeff disse no episódio “The Science of Illusion” (vigésimo episódio da primeira temporada), é o coração do grupo. A Britta é aquela que, apesar de o fazer de uma forma trapalhona, consegue que os outros elementos estejam mais unidos e mais em contacto com aquilo que sentem, de forma a conseguir resolver os seus problemas.


Sai o número 1

É o Troy quem desce neste cenário. Este é o cenário que mais nos faz rir por ser tão absurdo. No entanto, é o pior cenário possível. Nem preciso de explicar porquê. O que o torna assim? O Troy e o Abed começaram desde muito cedo a funcionar como um duo inseparável que toda a gente gosta de ver. De certa forma eles bloqueiam a ocorrência do caos do mundo. Sem o Troy, perde-se o elemento ativo do duo e o Abed não consegue atuar para trazer o melhor de todos ao de cima. É assim que eles são, eles procuram ser melhores, são pessoas bem-intencionadas. Ao contrário de outras personagens, aceitam as suas falhas (o caos) e tentam fazer o seu melhor e trazer o melhor dos outros. Resultado da ausência de alguém que aprendeu que se não nos aceitarmos no nosso melhor e no nosso pior, as coisas rapidamente podem descambar? O pior do mundo vem ao de cima e cria-se assim a Linha Temporal Mais Negra.


Sai o número 5

É o Abed quem desce neste cenário. A primeira coisa que ele faz antes de descer é pedir dinheiro a todos, pois ele ainda não compreendeu as regras de etiqueta social, tem dificuldade nesse aspeto. O único que acaba por lhe dar dinheiro é o Jeff, o que mais evidencia a forma como depositam nele o papel de líder. Quando a Britta vai para a casa-de-banho, desta vez sem a indicação de Abed, Jeff repara que Troy estava a olhar para Britta (é possível que também esteja nas outras linhas temporais e por isso é que o Jeff acaba sempre por se levantar para ir buscar uma bebida, mas não se consegue perceber com toda a certeza) e isso fá-lo sentir intimidade precisamente pelo que Britta disse noutra linha temporal, ele começa a ver o Troy como um adversário, o que faz perceber que ele está a envelhecer e ainda não está pronto para aceitar que o tempo passa. A ausência de Abed, que normalmente é um espectador e normalmente não influencia as outras situações de uma forma ativas, mas sim passiva, permite que as outras personagens possam interagir com as outras sem filtro. O facto de o Abed dizer aquilo que lhe apetece, torna as outras personagens mais conscientes daquilo que vão fazer ou dizer. Sem ele, o termo de comparação, tomam atitudes impulsivas com maior facilidade. As diferenças religiosas e morais de Shirley chocam abrasivamente, tensão entre Annie e Jeff é consumada, acabando por ter um desfecho mais melancólico devido à imaturidade de Annie e à falta de tato de Jeff, e a interação que melhor poderia ter decorrido, porque Troy fez a coisa correta e agradeceu a Pierce e demonstrou respeito por ele, algo que os outros não fazem e que tocou muito em Pierce, ficou estragada porque Pierce não refletiu e avançou logo com a sua pequena vingança e o Troy, maravilhado com a ideia de uma prenda, não conseguiu perceber que o Pierce estava a tentar redimir-se.


Não sai nenhum número

Todo agem como se o Abed fosse o mais esquisito do grupo, mas na linha temporal que seguimos em toda a série, o Abed decide apanhar o dado a meio do ar, refletindo em como não devemos procurar lutar contra as possibilidades caóticas do universo, tentando controlar coisas fora do nosso controlo (neste caso, tentar controlar esta decisão com um lance de dado) e simplesmente devemos aceitá-las. Assim, desmascarou Jeff que é o elemento que mais cresceu com este grupo, mas ainda tem as suas manhas. E tal como a ausência de Pierce proporcionou um final agradável, a ausência de Jeff provocou a melhor situação possível. O Jeff é parecido com o Pierce em muitos aspetos, apesar de estar a melhorar nessas partes negativas. Ele era o elemento que mais impedia o grupo de se divertir ao máximo durante a noite, tudo porque está constantemente a tentar criar a melhor imagem possível de si aos outros, para evitar ser ele mesmo, para evitar mostrar o que mais o magoa. Com o Jeff desmascarado, o Pierce não teve a necessidade de dizer a todos aquele comentário desagradável. A Britta pôde cantar a letra de “Roxanne” que era tudo o que a Shirley precisava para encontrar algo em comum com ela e poderem começar a cantar juntas. A Annie ao ver todos tão felizes, consegue deixar de ser tão exigente consigo e relaxar. O Pierce percebe que não quer estragar aquele ambiente e faz a coisa mais adulta e livra-se daquela prenda horrível. Rapidamente, o Troy, que é uma pessoa que gosta de ver os outros felizes, junta-se à festa e, logo a seguir, o Abed segue a decisão de Troy e também começa a dançar. O Jeff regressa e vê como tudo pode ser se ele não se preocupar com o que os outros pensam dele e do grupo (que é um reflexo seu) e deixar-se divertir, simplesmente estar com aqueles que gosta. É genial este episódio.

Manuel Fernandes

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