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Community – Seis Temporadas #andamovie



Os programas de televisão (e agora de streaming) normalmente regem-se por regras bem definidas que são familiares às audiências. Respeitam as suas expectativas e o seu investimento emocional. Procuram ser cativantes e oferecer algum conforto que a vida parece não dar. O objetivo não costuma ser o de oferecer uma experiência nova ou explorar novos temas, mas sim manter-se numa certa zona conhecida que vai garantir que tenha audiência e a mantenha durante os vários episódios. Ou melhor, os que trabalham nela cedem parte da sua visão para satisfazer estes desejos, mantendo o máximo que puderem daquilo que procuravam criar. Depois há outras séries. Aquelas que desrespeitam todas estas noções, criam as suas próprias regras, quebram-nas e dão origem a algo verdadeiramente especial. A série “Community”, que teve o seu primeiro episódio em 2009 e terminou em 2015, é uma série de culto que incluo na categoria de obras transgressoras e disruptivas que desafiam noções para dar origem a algo excecional e suis generis. O criador, Dan Harmon, é um nome que os fãs de “Rick and Morty” facilmente reconhecem, mas para mim, ele esteve no seu melhor com “Community”.


Até tenho dificuldade em descrever a premissa, pois não há verdadeiramente uma forma simples de dizer qual a narrativa que toma. Talvez o mais fácil seja descrever a premissa do primeiro episódio. Jeff Winger é um ex-advogado que durante anos exerceu sem nunca realmente ter tirado um curso de direito. Inscreve-se na Universidade Comunitária de Greendale para obter um diploma de uma maneira fácil, acabando por conhecer Britta da sua turma de espanhol. Ele inventa um grupo de estudo de espanhol para se aproximar dela. Este plano não corre bem e Jeff acaba por formar uma “comunidade” com mais seis pessoas com as quais não queria ter nada a ver. Todos esquisitos à sua maneira, todos com bastantes problemas por resolver e ainda mais defeitos, e todos incompatíveis uns com os outros. No entanto, e apesar de tudo que parecia ser lógico, eles até que funcionam bem e acabam por gostar uns dos outros. E esta descrição não diz nem um décimo daquilo que a série é, mas na impossibilidade de escrever um livro, restrinjo-me, na esperança de que vejam pelos vossos próprios olhos. Algumas vezes, nem sei qual é a verdadeira narrativa de um episódio. Imensas histórias ocorrem em simultâneo, outras completamente no fundo. Mas não é a narrativa que faz esta série sair fora da caixa. É uma sitcom que não o é, e que se serve muito de um humor auto-referencial e subversivo em que, de uma forma inteligente, as personagens parecem quebrar a “quarta parede” e entender que são personagens de uma série, mas sem nunca realmente o fazer. As piadas não seguem a estrutura normal de outras sitcoms como “Friends” ou “Seinfeld” (que são excelentes, mas em moldes mais tradicionais, não é uma crítica, apenas a constatação de um facto) que as preparam e logo a seguir “atacam” com o remate. Em “Community”, as piadas chovem a toda a hora, a maior parte das vezes o próprio remate só vem depois daquilo que seria o remate, outras vezes, preparam a piada e depois não a concretizam, ocasionalmente uma piada é iniciada na primeira temporada e só duas temporadas mais tarde é que se concretiza. Há alturas em que só quem estiver atento e investido é que vai perceber que certas coisas advêm daquilo que fomos percebendo das personagens, não sendo tão percetível para quem não procurar entender.


E em termos de género? Eu tenho chamado de sitcom, mas poderei realmente fazer isso? Greendale torna-se em muitas outras coisas, quer seja uma homenagem a “Tudo Bons Rapazes”, aos spaghetti westerns, “Lei e Ordem” e até jogos de 8-bits. É impossível prever o que vai acontecer a seguir. É uma série ainda mais gratificante para os cinéfilos e fãs de TV pela quantidade gigantesca de referências que vão sendo largadas a cada segundo. Um episódio pode ser mais típico e procurar focar-se nas relações entre as personagens, outros são tão conceptuais que qualquer noção de realidade poderia ser perdida, porém, parecem passar-se no domínio da realidade, não? Estes conceitos impossíveis são adaptados ao contexto da Universidade Comunitária de Greendale, o que permite que esta exista como um cenário pós-apocalíptico ou uma batalha num mundo de fantasia que acontece simplesmente através de narração. Parece que tudo é possível e que não há limites e quase nos faz acreditar que é possível que estas coisas nos aconteçam também.


Mas há algo que torna a série em algo de excelência. Claro que o humor imprevisível e estrutura meta têm grande impacto, mas o que faz com que ela seja tão boa são, sem dúvida alguma, as personagens. De certa forma temos os nossos “Sete Samurais” como Kurosawa tinha. Eles têm falhas, eles têm dificuldades em interagir com os outros e só estão no seu melhor quando conseguirem resolver as diferenças entre eles e compreenderem as piores coisas em si. As personagens de “Community” também embarcam em viagens de aceitação do eu e do outro e acabam por conseguir evoluir ao longo das temporadas. Mas elas são tão boas porque quase que são reais. Mesmo quando pareciam mais cartoon que pessoa, conseguiam manter o elemento de vulnerabilidade humana que a série tão bem retratava. Elas são problemáticas, elas têm falhas, e mesmo aprendendo, incorrem nos mesmos erros. Elas estão na situação que estão (ingressar em Greendale) porque as suas vidas não correram da forma que desejavam. Elas também crescem e conseguem ser melhor do que antes foram. Elas são como são. A noção de que uma personagem tem de ter uma personalidade apelativa para ser boa é completamente destruída (não só por esta série, achar isso é como dizer que “O Grande Gatsby” é um mau livro porque as personagens não eram simpáticas), porque se formos sinceros, as pessoas que gostamos não são sempre boas (pelo menos, a toda a hora). São pessoas simplesmente. Nem sempre têm dias bons e nem sempre estão contentes. Até as próprias personagens secundárias são mais que meros adereços de fundo.


Mesmo tendo sido cancelada, interrompida, perdendo membros do elenco, mantendo elementos do elenco que saíam e voltavam, ganhando novos, movida da televisão para a internet, despedimento e eventual recontratação de Dan Harmon, “Community” sobreviveu a tudo e todos. Este percurso tumultuoso refletiu-se ao longo da série que nunca procurou esconder que as coisas não eram as melhores, ou melhor dito, as condições em que desejavam estar, e conseguiu jogar com tudo aquilo que passava à sua volta. Nunca escondeu ser uma série e nunca escolheu perder aquilo que a tornava especial. A primeira temporada começa de uma forma bastante típica, ou assim pensamos, porque a certa altura, percebe-se que aquilo que se viu no primeiro episódio não tem muito a ver com outros. Esta originalidade manteve-se durante as três primeiras temporadas, até que na quarta houve uma ligeira “fuga de gás” (aconselho a pesquisa com estes termos) em que apesar da grande perda de qualidade e alguma de identidade, conseguiu ser boa. A quinta reganha o brilhantismo das anteriores e a última é uma despedida. “Community” nunca procurou ser uma série que se prolonga só porque sim, algo que matou imensas séries de televisão no passado (estou a olhar para ti “How I met your Mother”). “Community” sempre foi uma série sobre a própria vida. Sobre conhecer pessoas novas, viver coisas que nunca achamos que iríamos experienciar. Passar bons momentos, passar maus momentos. Sobre sofrer, sofre prazer, sobre viver de forma geral. E a última temporada termina com uma nota perfeita. É sobre olha para trás, ver o quão boas as coisas foram, mas está na hora de aceitar que por vezes, as coisas boas terminam. Aceitar que nem todos, por mais que gostemos deles, podem ficar connosco para sempre. E que isso não é mau, é apenas como a vida é. Não consigo ver esta série senão como perfeita de uma forma imperfeita, que é assim que as melhores coisas são. Agora, é só esperar por esse filme, não é? Dedos cruzados, pois já se passaram cinco anos, mas os fãs não desistem. #sixseasonsandamovie


Manuel Fernandes

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