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Neon Genesis Evangelion: Aceitar Quem Sou



Sempre que se fala de animação, há um consenso de que se trata de algo infantil, ou que deverá ser direcionado ao público mais jovem. E é curioso que esta ideia largamente aceite pela maioria seja algo falso, até porque os melhores filmes e séries de animação são aqueles que exploram temas que implicam uma maior maturidade para serem completamente compreendidos, mesmo quando direcionados a audiências mais infantis. Neste sentido, o que impede os trabalhos de animação de explorarem filosofia? De tentarem compreender a mais profunda parte da natureza humana? Absolutamente nada! E é isso que mestres na área compreenderam e decidiram usar a favor da sua arte.


Nos anos 90, Hideaki Anno já era reconhecido na indústria de animação japonesa. Trabalhou com Miyazaki em “Nausicaä do Vale do Vento”, foi um dos cofundadores da empresa Gainax e tornou-se num dos principais elementos da empresa no que toca a realização. O estilo de anime já contava com alguns trabalhos de grande interesse nessa data, com os filmes de Hayao Miyazaki, “Akira”, entre outros, nos quais eram explorados temas de cariz mais violento ou direcionados a compreender a humanidade ou a natureza, isto no grande ecrã. Na televisão, houve uma série que mudou para sempre o género e que acabaria por influenciar muitos outros trabalhos de animação japoneses. Foi “Neon Genesis Evangelion” que deu a Hideaki Anno os maiores sucessos da sua carreira. Uma série, dois filmes e mais recentemente uma tetralogia cinemática são os trabalhos que compõem este universo de animação de Hideaki Anno. O que inicialmente aparentava ser uma nova série com mechas conduzidos por estudantes e criaturas desconhecidas que seriam os seus inimigos (algo bastante típico), revelou-se muito rapidamente ser algo diferente do habitual. Não só procurou desconstruir um género, como também incorporar uma abordagem pós-modernista e por vezes abstrata na forma como contava a sua história.


A premissa pode ser assumida da seguinte forma: no ano de 2015 (a série estreou em 1995), quinze anos após um evento catastrófico conhecido como o “Segundo Impacto”, que acabou por derreter os glaciares da Antártida, a humanidade está às portas de ser destruída com a ameaça iminente do “Terceiro Impacto”. Shinji Ikari é o protagonista desta história, um adolescente chamado à cidade de Tóquio-3 pelo seu pai, Gendo Ikari, o diretor da NERV, uma organização paramilitar que foi criada com o intuito de combater criaturas gigantescas que ameaçam a existência humana chamadas de Anjos. Shinji foi chamado pelo seu pai porque para se equiparar ao poderio dos Anjos, a NERV criou máquinas biomecânicas (mechas) com o nome de Evangelion (ou EVA) e Shinji será um dos pilotos. O que aconteceria normalmente seria que Shinji entraria na máquina e mesmo com algum receio acabaria por ultrapassar os seus medos e dar o seu melhor pelo bem da humanidade. De uma forma muito básica para fins explicativos, mas esse seria o percurso típico. Em “Neon Genesis Evangelion”, o foco não é o enredo como noutros trabalhos do género, mas sim as personagens. Isto porque Hideaki Anno sabia que se queria explorar a psicologia humana e temas mais depressivos mas também esperançosos que teria que se focar nas suas personagens, teria que as tornar o mais humanas possível e tornar o resto algo mais secundário, no entanto, sem esquecer esses outros elementos como o enredo. Daí a minha surpresa quando ao longo destes 26 episódios, a grande duração destes era dedicada a diálogos e interações, gestos e impressões destas personagens, e poucos minutos do episódio se encarregavam de avançar com o enredo e explorar coisas como o que realmente existe por trás da organização NERV, o que são os Anjos e os EVA e elementos relacionados com o iminente “Terceiro Impacto”. Até as sequências de ação ocupavam somente alguns segundos em certos episódios.


Assim, Hideaki Anno pôde utilizar técnicas e elementos como montagem ou cinematografia para explorar os sentimentos e ideias das personagens e também criar formas de compará-las umas às outras. Apesar de os protagonistas terem normalmente características mais heroicas e os seus sinais de fraqueza serem reconhecidos e feitos os esforços para os ultrapassar (tornando-se assim nas suas melhores versões possíveis e algo que a audiência pode aspirar ser), nem todos conseguem fazer isso. Muitas pessoas estão “quebradas” de uma certa maneira ou transportam chagas no seu coração que dificultam a sua existência. Foi com este tipo de pessoas que Anno decidiu jogar, sendo que ele mesmo tinha sofrido de depressão antes de começar a trabalhar na ideia para esta série. Revelando os seus traumas, e momentos de maior infelicidade, conseguimos compreender pelo que elas passam e também estender essa compreensão não a somente uma personagem, mas a um grande leque delas. Claro está que passamos mais tempo com Shinji, os outros dois pilotos, Rei e Asuka, e com a figura mais próxima de algo parental, Misato. Porém, para compreender todos os mistérios por trás deste universo, é preciso compreender as pessoas nele envolvidas, desde personagens mais misteriosas como Gendo ou Kozo, a outras mais amadas como Kaji ou Ritsuko, pois todos eles escondem alguma mágoa que fomenta as motivações de cada um. Desta forma, deixa de existir uma linha ténue entre o bem e o mal, e mesmo que certas personagens tendam mais para o caos e outras estejam num caminho mais díspar, há claramente elementos tidos classicamente como bons e outros classificados como maus em todas as personagens.


Todo este estudo apoia-se essencialmente na fusão da psicologia com filosofia. Anno faz um estudo da personalidade humana e como esta evolui tendo em conta os eventos pessoais, e também procura abordar a anime de uma forma existencialista. Quase que parece que o que Anno nos está a dizer é que só temos uma vida e que o melhor que temos a fazer é tentar gostar de nós mesmo, pois gostar de quem somos é um caminho para conseguirmos gostar dos outros. Mesmo havendo coisas que não gostemos em nós, a aceitação das melhores e piores partes do eu, possibilitam uma das coisas mais difíceis da natureza humana, a compreensão dos outros da mesma forma que nos compreendemos a nós mesmos. Daí que face à falta de orçamento que a série sofreu no seu final, os episódios 25 e 26 revelem os eventos dramáticos que ocorreram, não ao mostrá-los diretamente, mas sim da forma que eles foram percecionados por Shinji. E daí que a abordagem abstrata, cheia de monólogos, esboços e animação incompleta que nos dão uma sensação de despersonalização ou incompreensão total sejam a tese perfeita de tudo aquilo que a série procurou fazer. Não era o final pretendido por Hideaki Anno, mas ele conseguiu pegar numa adversidade, adaptá-la e ainda assim obter um resultado formidável. A famosa sequência do “Parabéns!” acaba assim por ter um grande impacto emocional para aqueles que se conectaram às ideias exploradas, eu incluído. Não é só a anime com o genérico musical mais reconhecido de sempre, é também um testemunho sobre encontrar quem é cada um e aceitar o eu. E Anno teve uma segunda oportunidade para terminar esta história da maneira desejada, pois a saga não acabou com a série.

Manuel Fernandes

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