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O Último dos Homens: Como ver Filmes Mudos



Existe alguma dificuldade em definir quando nasceu o cinema. Desde 1878 que Eadward Muybridge começou a juntar várias fotografias de pessoas e animais em locomoção, exibindo-as sucessivamente de a forma dar essa mesma noção de movimento, uma técnica chamada de cronofotografia. O mais famoso destes trabalhos, intitula-se “Sallie Gardner at a Gallop”, que consiste simplesmente num jóquei a cavalgar. Mais tarde, na década de 90, do século XIX, vários inventores começaram a explorar a construção de câmaras que pudessem captar imagens contínuas com vários fotogramas num segundo (o estipulado seria entre 16 a 24) em vez de uma única fotografia. Com estas câmaras, os irmãos Lumiére apresentaram, em 1895, a primeira exposição pública de alguns dos seus inovadores trabalhos. Entrou-se na época do cinema mudo que durou sensivelmente até ao final dos anos 20 do século XX e infelizmente, estima-se que 80-90% destes tenham sido destruídos, acabando por se encontrar ainda recentemente, filmes que se julgavam há muito perdidos. Mais tarde, houve uma disrupção da ordem e evolução do cinema mudo, com o primeiro filme com som sincronizado a aparecer em 1927, “O Cantor de Jazz”, a mudar as cartas todas e a trazer a vinda dos filmes sonoros.


Para os mais dedicados cinéfilos, o cinema mudo faz parte do repertório habitual de filmes para ver em casa. Mas para quem só agora está a iniciar ou simplesmente nunca percebeu o interesse, pode ser uma tarefa mais complicada. A simples noção de um filme não ter som é assustadora, mas pretendo quebrar com esta ideia, pois se houve algo que aprendi foi que ver um filme mudo é sem dúvida uma experiência mais musical do que a maioria dos filmes sonoros. Na altura, quando se ia a uma sala de espetáculos para ver um filme, haveria quase sempre uma banda ou orquestra a acompanhá-los musicalmente. A maioria destas salas de espetáculos recebia não só a bobina para passar o filme no projetor, mas também a pauta musical que os deveria acompanhar. Caso não houvesse pauta, nada como improvisar. A música refletia imenso o tom do filme. Se mais dramático, mais aventureiro, mais maléfico. Além das imagens, o trabalho da orquestra tinha um impacto brutal na forma como as pessoas experienciavam o cinema.


Apoiando-se em todas as máximas que a imagem e a música podem ter, F. W. Murnau, já famoso e influente realizador alemão nesta época, decidiu criar um filme que daria mais valores a essas ideias e minimamente aos intertítulos. A linguagem do filme seria dada não pelo diálogo, mas sim por aquilo que os olhos e os ouvidos captavam. Refiro-me a “O Último dos Homens”, estreado pela primeira vez em 1924. A história é bastante simples, um já velho porteiro de um luxuoso hotel, que tem grande orgulho no seu trabalho e que todos admiram por ser um elemento tão valioso de um negócio das elites, está a denegrir a imagem do Hotel Atlantic, por estar velho e com mais dificuldade em realizar as suas tarefas. Por causa disto, o gerente decide que ele não será a pessoa mais adequada para manter este trabalho que tanto define a imagem do estabelecimento e dá-lhe uma tarefa que melhor perfil ele terá, o de fornecer utensílios para limpeza e higienização das casas-de-banho do prestigiado hotel (emprego que confesso não ter a noção do nome que o melhor descreve). O choque é brutal e tudo isto se passa na véspera do casamento da sua filha. A expressão iluminada, que resplendia e iluminava a sala toda, enquanto penteava a sua longa barba, subitamente desapareceu e apenas vemos um corpo sem alma, como se tudo de bom que existia no mundo, subitamente desaparecesse. Nem consegue despir o uniforme que tanto estatuto e autoridade lhe trazia, tendo que ser os colegas a realizar essa tarefa, tal e qual uma alma que repentinamente abandona o corpo que acompanhou tantos anos. Sem pensar, rouba o casaco, algo que nele tem um efeito tão dramático que até imagina o hotel a debruçar-se sobre ele e o vento a empurrá-lo para trás, como se o mundo lhe quisesse dizer que deveria voltar para trás- Quando chega a casa, não consegue simplesmente dizer que o emprego que mais valor lhe trazia já não estava na sua posse. Um misto de vergonha e de vontade de não estragar a festa para aqueles que o amam. Após a festança, o nosso protagonista, após algumas bebidas, perde-se nos seus pensamentos e somos agraciados como uma das mais belas sequências de sonho do cinema. O seu corpo começa a rodopiar e somos transportados de volta ao Hotel Atlantic, onde o nosso antigo porteiro realiza as suas tarefas com a força e jovialidade que teria há tanto tempo atrás. Pega nas malas com uma só mão e até as consegue arremessar para o céu com tanta facilidade que toda a gente o aplaude por tamanha proeza. O seu mais profundo desejo é a simples valorização dos demais. Para um homem mais velho, que tanto já perdeu, pode ser isso o maior desejo e que mais felicidade lhe trará. No dia seguinte, está na hora de voltar ao trabalho e seguir o habitual rumo. Infelizmente, há que mudar o caminho pois ele não pode simplesmente aparecer na entrada do grandioso Hotel Atlantic com um uniforme roubado. Há que o esconder e escapulir pelas traseiras. O percurso da nossa personagem não poderia ser mais melancólico. No seu novo emprego, descobre que até os clientes o tratam de maneira diferente. Já não era comtemplado com calorosos cumprimentos, mas sim com impaciência e alguma raiva no caso de não estar à altura da importantíssima tarefa de limpar as mãos das outras pessoas.




Eventualmente, a sua mulher descobre que o seu “importante” marido tem o trabalho mais baixo em todo o Hotel. Até lhe passará pela cabeça que durante tanto tempo ele teria mentido sobre o que realmente faria. Em vez de estar na entrada majestosa, esteve sempre nas catacumbas. Esta notícia passa rapidamente por toda a vizinhança e quando o nosso herói retorna a sua casa, vê-se como o alvo de escárnio dos demais habitantes daquela comunidade. A sua família confronta-o, não com paciência ou com a esperança de compreender, mas com raiva atroz. A vergonha domina-o e sem conseguir explicar alguma coisa, decide fugir e tentar reparar o erro, sabendo ele que nada lhe trará o seu emprego de volta. De volta ao hotel, encontra o guarda-noturno, a quem explica a situação. Este torna-se na única pessoa capaz de oferecer alguma compaixão ao antigo porteiro. A única pessoa que quando ele teve frio, foi capaz de lhe colocar um caso para o aquecer. Infelizmente, este seria o final para a maioria das pessoas. O mais realista neste mundo expressionista, com edifícios geometricamente exagerados. Mas, para a sensibilidade da audiência, algo mais alegre servirá de fim. Já chegarei pois pretendo falar de uma experiência pessoal.


Já tinha visto este filme há cerca de dois anos, com o acompanhamento de música clássica que muito bem conduzia o enredo. Infelizmente, vi em casa, para a maioria dos filmes mudos, não haverá hipótese melhor de os ver (salvaguardando a fortuna de a maioria deles fazerem parte do domínio público). No Verão do ano anterior, graças à iniciativa “A Gosto de Verão” pude ver “O Último dos Homens” projetado numa tela, juntamente com um duo musical que combinou estilos de música mais recentes para acompanhar o filme, e também para lhe dar efeitos sonoros divertidos que a versão que vi não apresentava. Trouxe amigos meus que tiveram a sua primeira dose de cinema mudo. E confesso desde já que a mudança do acompanhamento musical mostrou de forma excelente o dinamismo que o filme mudo pode ter. Não necessita de se reger por peças específicas, mas sim ganhar alguma fluidez combinando os elementos do passado e do presente (quem sabe do futuro para os mais vanguardistas). Tanto o acompanhamento clássico como o mais moderno (por vezes psicadélico) se adequaram perfeitamente à película. Quanto às opiniões… de uma forma geral, foram bastante positivas. Inicialmente reinou a confusão porque é típico deste cinema haver maior fundamento no cenário e na atuação mais física em detrimento do diálogo, mas este filme, especificamente, leva essa noção ainda mais longe. Nem todos gostaram, no entanto, valorizando acima de tudo a experiência e talvez mais a companhia do que a obra em si. Outro, sentiu um profundo desagrado quando a vizinhança ridiculizou o nosso protagonista, uma prova do impacto emocional que filme com quase 100 anos ainda hoje pode ter. Com isto, quero chegar à noção que o cinema pode ser equiparado a línguas. De momento, somos mais fluentes no cinema contemporâneo mais comercial, o que mais vezes nos é apresentado. Quando começamos a explorar os filmes de outra década ou país, nem sempre temos uma reação inicial muito favorável muito por não sermos fluentes nestas outras línguas que até então eram completamente desconhecidas. Imensos filmes que atualmente considero grandes obras-primas e pedaços importantes da Humanidade, não tiveram grande impacto em mim inicialmente, pois não estaria preparado para os ver ainda, mas com o tempo, as dificuldades desvanecem-se e passamos a apreciar e a ver o brilhantismo nos chamados clássicos. Por isso, para quem quiser experimentar o cinema mudo, se à primeira não virem a beleza nesta época, não desistam pois num repertório tão grande de tantas peças incríveis, encontrarão algo que vos será mais apropriado. Por vezes, a simples forma como os vemos tem um impacto estrondoso. E ver num pequeno auditório cheio, juntamente com pessoas que gosto e com música ao vivo tornou ainda mais esplendorosa a experiência que foi ver este excelente filme. Isto para dizer que muitos cineclubes ou até os próprios municípios oferecem imensas oportunidades de ver estes clássicos nas melhores condições, há que estar atento!


Não esquecendo do final melancólico para que caminhamos, num último intertítulo pode ler-se “Aqui a nossa história, deveria verdadeiramente terminar, pois na vida real, o desamparado velho teria pouco que esperar da vida senão a morte. O autor teve pena, no entanto, e providenciou um epílogo realmente improvável”. Numa página de jornal, lê-se que um milionário subitamente faleceu nos lavabos do Hotel Atlantic, mas no seu testamento, lia-se que iria herdar toda a sua fortuna a pessoa em cujos braços ele morresse. Quis o destino que tal acontecimento fosse ocorrer nos braços do nosso adorado, e com o novo estatuto de milionário, veio a admiração e respeito dos demais. Parece que aquilo que a maioria das pessoas mais valoriza é o dinheiro. E assim vemos o nosso herói novamente a sorrir (sem ter esquecido quem na pior altura da sua vida, teve a decência de lhe oferecer um casaco). Tão poderoso é o cinema que com um simples intertítulo, passamos do desespero total a uma vida desafogada.




Manuel Fernandes

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