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Para Lá do Jardim: Por Favor Continuem a Circular as Cassetes

Eu tinha planeado fazer esta crítica há já algum tempo, mas fui adiando porque queria rever a série antes de finalizar o texto, para ser o mais justo possível. No entanto, a plataforma de streaming em que a vi pela primeira vez, retirou-a da programação portuguesa, pelo que agora terei de recorrer apenas à memória para descrever a minissérie de animação mais poética que me lembro ter visto.

Falo de Para Lá do Jardim (título original Over The Garden Wall), uma minissérie de 10 episódios, com cerca de 11 minutos cada, criada por Patrick McHale a novembro de 2014 para o Cartoon Network – embora, tanto quanto saiba, nunca tenha passado neste canal em Portugal e eu só a consegui ver pela Netflix – e já conta com dois Emmys! A história segue dois meios-irmãos, Greg e Wirt, à medida que tentam regressar a casa após se perderem na misteriosa floresta do Desconhecido. Entre muitos outros personagens e locais caricatos, encontram um sombrio Lenhador que os avisa da Besta que os persegue ao longo da jornada; e Beatrice, uma ave azul falante que promete guiá-los até Adelaide, a Bruxa Boa do Pasto que supostamente os levará a casa.

A animação é espetacular. Os personagens, especialmente os humanos, são desenhados de forma simplista e estilizada, gerando silhuetas facilmente reconhecíveis e empáticas, enquanto os cenários e animais possuem um desenho mais realista e detalhado, ajudando a criar a ilusão de um mundo verdadeiro apesar dos acontecimentos impossíveis. Há imensas referências e alusões a diferentes filmes e animações, dos mais conhecidos (novamente uma bruxa no estilo d’A Viagem de Chihiro; a taberneira semelhante à Betty Boop) até os mais obscuros para os menos aficionados (a abertura do primeiro episódio, análoga à das vinhetas de Flip o Sapo; a narrativa do episódio 8 semelhante às Comédias da Alice de Walt Disney antes da fundação do seu estúdio). E nas vozes, pelo menos na versão original, contamos com talentos como Elijah Wood, Melanie Lynskey, Chrystopher Lloyd, Samuel Ramey, Tim Curry, John Cleese e Shirley Jones.

Além da técnica, a simbologia e fluidez narrativa está fantástica. O ambiente é claramente inspirado no Halloween e nos contos infantis, e mantém-se na linha entre o fantasioso e o sinistro, o presente e o passado típico de ambos. As músicas são bem elaboradas e adaptadas aos momentos, ora mantendo o tom contemplativo e misterioso do ambiente, ora reforçando a comédia e simplicidade infantil de certos personagens. Mais uma vez, há uma riqueza de referências, principalmente focadas nos clássicos (a Beatrice, que partilha o nome com a personagem d’A Divina Comédia; as canções da Besta que têm um tema operático, com a primeira referenciando a ópera de Hansel e Gretel e a segunda a canção O Holy Night). Há uma exploração bem visível entre duas filosofias de vida opostas no Greg e no Wirt, um contraste entre o otimismo inocente e o cinismo derrotista e das respetivas conquistas na vida. Beatrice é desenvolvida brilhantemente e uma fonte constante de humor seco e sarcástico, enquanto o Lenhador é um personagem inicialmente misterioso e ameaçador, mas que se revela um reflexo trágico do possível futuro de um dos protagonistas. A Besta, apesar de passar a maior parte da série escondida metafórica e literalmente nas sombras (só vemos o seu corpo verdadeiro por uma fração de segundo no último episódio), é seguramente um dos vilões mais aterradores que conheci, não só pela facilidade com que manipula os outros, mas sobretudo pelo que representa: a depressão e o desespero que leva as pessoas a desistirem de tudo, até, como ele próprio canta, “ se submeterem ao solo da terra”. Grande parte da série desenrola-se de incógnita em incógnita, e embora algumas perguntas sejam respondidas – especialmente no penúltimo episódio que conta como os irmãos chegaram ao Desconhecido – muitas outras permanecem abertas; afinal, o Desconhecido não é um lugar de finais, mas de transições e histórias perdidas.

Não sei como ver a série novamente; tanto quanto sei, nunca passou no Cartoon Network cá em Portugal, a Netflix já a tirou do catálogo nacional e nunca vi o DVD à venda no país. Mas, se conseguirem, aproveitem para dar este passeio pelo Outono eterno do Desconhecido. Garanto que vale a pena!


Gabriel Peixoto

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