top of page
Foto do escritorunderscop3

A Máscara: Por trás da Persona


Ingmar Bergman não se cingia à simplicidade. Era um nativo do teatro que se acoplou ao cinema e que usou a sua mestria numa arte para impulsionar outra. De um repertório gigantesco de filmes difíceis, de uma maturidade inigualável e que evidenciam uma forte capacidade de autorreflexão, o que mais divide os pensadores é, de uma forma consensual, “Persona”, traduzido para português como “A Máscara”. Se na maioria dos seus trabalhos, Bergman pegou na tradição e fundiu o real com o fantasioso e onírico, em “Persona” todas estas noções são levadas ao extremo que ora roça o objetivo, ora se torna abstrato. O que se passou então em “Persona”? Procurarei fazer uma dissecação do filme que em nada será uma regra, mas sim uma simples opinião.


A primeira cena parece completamente deslocada do resto do filme. Mas mostra-nos algo essencial. Isto é um filme, nada mais que isso. O mero facto de haver uma câmara impede que se capte a realidade como ela verdadeiramente é. Dito isto podemos começar a fazer magia e explorar aquilo que move as pessoas. As imagens que esta sequência passa terão um certo efeito na audiência, ora medo, ora horror ou até pânico. Vemos um falo escondido na contagem inicial das cenas (quase como uma exerção do poder artístico que quebra as regras). Vemos aranhas, mãos a serem apregoadas, uma ovelha sendo esquartejada. Parece que Bergman nos diz que o cinema é poderoso, pois mesmo que nunca capte a realidade, as imagens conseguem ter um efeito brutal em nós. Nós não estamos a ver uma aranha, estamos a ver uma filmagem de uma aranha. Jean-Luc Godard disse “Filme é a verdade 24 vezes por segundo, e todos os cortes são uma mentira”. E Bergman não se esqueceu disso, indo mais longe ao dizê-lo diretamente à audiência. Estamos a entrar no mundo dele. Seguidamente, um rapaz, que aparenta estar numa morgue com demais cadáveres, levanta-se do seu sono e começa a ler. Até que repara na câmara que o filma. Limpa a tela e começamos a ver a imagem de duas mulheres que parecem tornar-se numa só. Os créditos iniciais não mentem também, estamos no mundo de Bergman e ele está prestes a mexer com a nossa mente.



Terminado este prefácio, começa o que se pode chamar de enredo principal (se é que algo se pode chamar de enredo pois Bergman é bastante direto quando nos diz que o cinema é apenas um conjunto imagens interligadas para a nossa mente decifrar da maneira que melhor entender). Uma famosa atriz, Elisabet Vogler, deixou de falar de forma súbita, algo que a médica confirmou não se tratar de doença física ou mental. Alma, uma jovem enfermeira, é colocada como responsável do tratamento de Elisabet, apesar de não se sentir preparada para tal. Nesta fase, vários close-ups são feitos de forma a vermos a cara das atrizes principais pois nelas estão todas as respostas. Para além de ser um gosto olhar para mulheres de feições tão belas, torna-se desafiante perceber o que elas nos tentam dizer com expressões finas e subtis. Num destes close-ups, Elisabet Vogler parece quase conseguir pronunciar um som à medida que mexe os seus lábios, apesar de não o fazer no final. Será que ela consegue mesmo falar apesar dos 3 meses de silêncio? Mais misteriosa é a sua reação às imagens de um homem a cometer um ato de autoemulação durante a Guerra do Vietname. É incomodativo para qualquer pessoa, mas algo naquelas imagens despertaram um profundo terror nela. Será que ela própria se está a destruir como um protesto? E porque é que ela rasga a fotografia do seu filho após Alma lhe ler uma carta do seu marido que tanto deseja o seu bem? Parece mesmo que a conjetura da autodestruição será a mais acertada. Alma também não é esquecida, e olhando diretamente para a câmara, conta-nos alguns bocados da sua vida como o seu casamento futuro. Parece haver um claro contraste entre uma mulher que se encontra despedaçada e outra que vagueia na vida. A decisão médica é a de isolar as duas mulheres num local calmo e sossegado. A doutora acha que eventualmente Elisabet largará o papel de pobre mulher silenciosa quando não houver audiência para a aclamar pelo brilhantismo da sua atuação. Afirma de forma acutilante o quão temível é sermos desprovidos das nossas máscaras e termos de nos mostrar ao mundo como somos. Carl Jung, que definiu a psicologia da Persona, disse “um resultado da dissolução da persona é a libertação da fantasia… desorientação”, que é aquilo que Elisabet Vogler estará provavelmente a passar por.


Alma e Elisabet, na sua estadia na casa de férias da médica, tornam-se inseparáveis. Alma é a única que fala das duas, mas os seus discursos nunca parecem solilóquios. Mesmo sem resposta verbal, Elisabet mostra a sua atenção. Tornam-se tão íntimas que Alma lhe conta sórdidos pormenores íntimos numa descrição erótica que mais gráfica é que a própria visualização do ato. Mas para quê mostrar? Bergman sabia que a descrição era mais forte do que a imagem pois vemos a fantasia que Alma criou do episódio e não algo sujo e desconfortável. E já agora, porquê colocar esta lembrança? Para mostrar como Alma se sente próxima de Elisabet ao ponto de lhe falar dos seus episódios mais excitantes e também dos mais deprimentes. “Poderá ser uma e mesma pessoa ao mesmo tempo?” questiona Alma, respondendo a si mesmo que se trata de uma pergunta parva. Mas será? Mesmo parecendo que Alma não fala sozinha pois Elisabet a ouve e lhe responde à sua maneira, elas parecem ser uma só pois Alma sente-se tão confortável na presença daquela pessoa que é a sua paciente com quem deveria manter uma relação estritamente profissional, que a trata como uma velha amiga. Após mais uma conversa unidirecional, Alma decide descansar. Deita-se para dormir, e Elisabet com um comprido vestido branco aproxima-se de Alma. Elisabet assemelha-se a um fantasmagórico espírito que faz Alma erguer-se do seu sono para se juntar a ela, dando origem a uma das mais belas imagens que o cinema produziu em que as duas mulheres parecem ser uma. No dia seguinte, Elisabet nega sequer ter estado no quarto de Alma. Ou mente ou tudo se passou na mente da jovem enfermeira.


Elisabet escreve cartas para o seu marido que Alma se oferece, alegremente, para as deixar no correio. Este evento dá-nos uma noção da mente de Elisabet pois Alma não resiste a abrir a carta. Nela, Elisabet refere-se a Alma quase como um animal, como alguém que se afeiçoou de forma apaixonante a ela e que se tornou digna de estudo. Também demonstra crítica (e desta forma caracterizo eu) injusta dos comportamentos que Alma tão sensivelmente lhe confidenciou. Alma começa a fica com raiva e nesta fase, a película queima-se. A ação para e não temos noção do que se passou, se decidiram avançar rapidamente no tempo, se estamos a ter uma lição daquilo que Alma sente. Talvez a segunda pois antes da película arder, a cara de Alma é rasgada a metade, como se faltasse a outra metade que será Elisabet. De qualquer das maneiras e independentemente daquilo que eu pense, é uma lembrança de que estamos perante um filme e a única coisa que temos realmente é ideias que nós próprios criamos. Quando retomamos a ação, as mulheres estão vestidas de preto tal como os fatos-de-banho que as adornavam momentos antes da cena ser cortada. A minha interpretação para tal decisão será que isto nos permite ver as mulheres de uma forma mais próxima. Com roupas semelhantes, tornam-se mais parecidas na nossa imagem mental.


Alma confronta Elisabet e não o faz de forma calma, ameaçando, com um gesto só, queimá-la com água quente, o que faz Elisabet falar pela primeira vez em todo o filme. E por mais violento física e psicologicamente que seja este conflito, Alma quebra e implora a Elisabet que não a abandone. As duas mulheres estão a tornar-se numa só, numa perspetiva abstrata, ou a desenvolver uma relação de dependência para aqueles que preferem que as imagens tenham a mesma lógica que o mundo que nos rodeia. O curioso das ideias e pensamentos é que podem ser ilógicos e irracionais, completamente surreais e não terem qualquer lugar no planeta Terra, mas estarem completamente protegidos na nossa mente. Seguidamente, Elisabet olha para uma fotografia de judeus que foram presos no gueto de Varsóvia. Poderia ter um efeito semelhante às imagens da autoemulação que vimos previamente, mas apesar de melancólica, a expressão prévia de horror não se repete, ao qual associo a um fenómeno de despersonalização. Nessa noite, é Alma quem visita Elisabet no seu quarto e se aproxima dela para mais uma vez se unirem numa só. E acabam por o fazer, pois no dia seguinte, o marido de Elisabet vem visitá-la mas confunde Alma com a sua mulher. Desta vez, Alma está vestida de tons claros e Elisabet de negro, com um semblante sombrio. Como é possível não distinguir duas mulheres com belezas tão distintas? Elisabet pega na mão de Alma e indica-lhe o que fazer. As duas pessoas ignoram a presença da atriz e Alma toma o seu papel como Elisabet. Elas agora são mesmo uma só. Parece que Alma é a máscara que Elisabet presenteia às pessoas. Uma máscara simpática e cativante, com um discurso bem desenvolvido. Elisabet é a verdadeira pessoa, calada, introvertida, sem voz, que apesar de ter poder para falar, apenas o faz quando está perante o medo da morte. A cena seguinte apresenta as duas mulheres outra vez vestidas de preto, como se numa disputa interna, a pessoa exterior e a pessoa interior iniciassem um novo confronto em que Alma, sem freio na língua, revela o pecado de Elisabet, o de não amar o seu filho, aquilo que ela mais medo tem de admitir, que não se sente como outras mães que vêm nos seus filhos a maior fonte de felicidade e de desejo. Vê-o de forma repugnante e é fria pois ele possivelmente destruiu a brilhante carreira que acha que teria. Esperam dela as funções familiares. E não é que ela não quisesse ser mãe, mas a parentalidade implica sacrifícios que Elisabet não estava disposta a fazer. Alma toma o papel de super-ego desta mente que culpa Elisabet pelo seu comportamento “errado”. Todo este duelo repete-se. Algo artificial ver duas formas da mesma cena. Trata-se de mostrar que isto é uma atuação. Não podemos esquecer que Elisabet é uma exímia atriz e a sua transformação em Alma está a ser preparada. Ela tenta destruir-se para ser outra pessoa. Mas, durante o processo, parece que Alma se tenta libertar e afirma “Não! Não sou como tu. Não me sinto como tu. Sou a Irmã Alma, só estou aqui para ajudar. Eu não sou a Elisabet Vogler. Tu é que és a Elisabet Vogler”. Mas em vão porque a película volta a pausar e desta vez, a face de Alma não está cortada a meio, pelo contrário, adquire a face completa de Elisabet. Retomando a cena após outra pausa, vemos Elisabet, ainda com a mesma roupa preta e Alma com o seu uniforme de enfermeira. Esta diz “Vamos ver quanto tempo aguento. Eu nunca vou ser como tu, nunca. Estou sempre a mudar. Podes fazer o que quiseres, nunca me irás atingir”, que afirmações brilhantes! Ao colocar as duas mulheres frente a frente e acabando a mais confiante por entrar num estado de desespero em pancadas na mesa, Ingmar Bergman mostra-nos como funcionam as nossas próprias máscaras. Mudamos o nosso exterior para melhor nos servir no mundo. Somos Alma. E é Alma quem Elisabet, o verdadeiro eu, quer alcançar. Nós queremos que a nossa Persona consiga dizer que é melhor que nós. Que ela tenha todo o poder da palavra quando nós estamos silenciosos e apenas conseguimos falar por trás dela. Mas as máscaras não são para sempre e são suscetíveis de se quebrarem e entrarem no desespero. Existe uma linha ténue entre a sua viabilidade e possível destruição. Há que esconder ao máximo a verdadeira natureza individual e por isso, Alma pega em Elisabet e pede-lhe para repetir a palavra nada, símbolo da maneira como Elisabet verdadeiramente se vê.


Numa das últimas cenas, Alma (ou Elisabet se calhar) acorda e vê Elisabet a fazer as malas. Ela também arruma os objetos da casa para preparar a saída do isolamento. Olha-se para o espelho e vemos o seu reflexo fundido com a imagem inesquecível que todos os que melhor resume o filme, a das duas mulheres tão próximas como uma só. Vemos então Elisabet, usando Alma como sua persona. Ela sai sozinha e um zoom aproxima a imagem de uma estátua de pedra, mais concretamente a sua face que representa que quem está por cima é Alma, mas (e por isso de repente é intercalada a face de Elisabet com a sua maquilhagem de atriz) quem existe na verdade é Elisabet. A Persona entra num autocarro para não sabemos onde, no entanto, é seguida por uma equipa de filmagens. Quase nos esquecemos que isto é um filme e estes momentos definem que nada é real.


Voltamos ao miúdo do prefácio que escolho ver como a audiência do filme, eu e todos os outros que procurem sofrer a experiência cinemática que Bergman criou, e a câmara que nos diz que o filme acabou. Agora sem imagens, só nos restam ideias. A experiência do cinema também engloba a reflexão. “A Máscara” é mais do que uma forma artística de mostrar as teses de Carl Jung e Sigmund Freud. É uma porta para a mente de Ingmar Bergman. Ele oferece-nos a possibilidade de ver as duas atrizes em atuações fenomenais, de um calibre fantástico e inalcançável para a maioria dos aspirantes atores, para que possamos retirar delas outra perspetiva sobre aquilo que nós somos. Por mais que neguemos, nós adequamos o nosso comportamento tendo em conta a situação social. Não é deliberado, mas fazemo-lo. E também o fazemos pois é mais fácil mostrar aos demais uma certa faceta e não o terror que somos realmente a outros olhos. A minha forma de interpretar uma tão complexa obra pode-se resumir da seguinte forma: Elisabet não aguentou mais os sentimentos de culpa que tinha relativamente ao seu filho, por desprezá-lo e não conseguir oferecer o amor que ele necessitava, acabando por silenciar-se por ver destruída a máscara que tinha, a de Elisabet Vogler, grande atriz; foi hospitalizada e conhece Alma, uma jovem enfermeira que é confiante, tem aventuras sexuais excitantes e é tão carinhosa e amorosa; Alma é tudo aquilo que ela deseja ser naquele momento e Elisabet decide “estudá-la” para compreender melhor como assimilá-la; quando Alma descobre a prontidão de Elisabet em revelar os seus segredos profundos, quebra a ligação que tinham e possivelmente abandona Elisabet que tendo estado tempo suficiente com Alma, consegue recriar na perfeição a máscara que pretendia; Elisabet vai fundindo aos poucos a sua pessoa com a de Alma, ao ponto de vermos a jovem enfermeira mas as outras personagens, como o marido de Elisabet, verem a pessoal real por baixo; existe um confronto interno de forma a esconder ao máximo os supracitados sentimentos de culpa, algo que é feito através da redução de Elisabet a nada, e renascendo sob a forma de Alma; a pessoa que entrou na casa foi Elisabet com uma máscara destruída, e também ela foi quem saiu mas com um novo rosto que a ajudará a combater os problemas pessoais.


Esta é a minha atual conceção de “A Máscara”, porém visualizações futuras poderão ditar novos pensamentos. Assim quis Bergman, que não fosse consensualmente objetivo, mas sim que cada um pudesse criar as suas ideias e pensamentos, apoiando-se em si mesmos e nos seus conhecimentos do mundo. Que mais dizer deste genial trabalho? Talvez o melhor será calar-me que a escrita já vai longa e, tal como Elisabet, dizer “nada”, deixando novas interpretações aos demais.


Manuel Fernandes

28 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page