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A Propósito de Llewyn Davis: A Propósito de quê, mesmo?



Os irmãos Coen são dos mais enigmáticos e simultaneamente cómicos realizadores a trabalhar atualmente. Um humor por vezes bastante negro ou completamente absurdo, que por ser tão subtil ou ridículo, passará por cima de muitos. E assim é verdade para filmes como “Fargo”, “Barton Fink” ou aquele que é o meu trabalho preferido deles da década de 2010s, “A Propósito de Llewyn Davis”. Mas realmente, qual será o propósito deste personagem? Como autores, eles não procuram simplesmente contar uma história (na verdade, nenhuma história no mundo do cinema ou literatura, música, etc… é simplesmente uma história), mas sim refletir filosoficamente sobre a vida em si. Recapitulemos então, o filme abre com a imagem do protagonista numa atuação musical. O local? Greenwich Village, Nova Iorque em 1961 e estamos num ponto importante da música folk, e da música popular em geral. Um mar de poetas com guitarras na mão e vozes fortes traziam fortes mensagens políticas que mudariam a cena de uma forma revolucionária. Falo de artistas como Bob Dylan, Joan Baez, Simon e Garfunkel, entre muitos outros que atuavam em cafés, parques e outros locais. O resto é história.


No meio destes artistas brilhantes, temos Llewyn Davis que apesar da imagem inicial nos levar a crer que é também uma estrela ou pelo menos um artista em ascensão, está um bocado longe disso. Llewyn parece estar longe de tudo na verdade. Ele depende da generosidade de amigos para dormir e o seu mais recente disco, Inside Llewyn Davis, não está a vender muito bem. Para além disso, há a questão de um gato. Desde o início do filme que este gato, pertencente aos seus amigos, os Gorfein, tenta fugir dele. Tentou fugir quando Llewyn abandonou a casa dos Gorfein e por isso viu-se obrigado a ficar com ele, tentou fugir quando Llewyn estava no metro e finalmente conseguiu durante a estadia de Llewyn na casa da sua amiga, Jean, que namora com o seu outro amigo, Jim. E não me posso esquecer da Jean pois está grávida e é possível que o bebé seja de Llewyn. O desespero de Llewyn ainda não acabou pois ele precisa desesperadamente de dinheiro para que Jean possa fazer um aborto e o seu agente não lho pode dar. A sua família também não lho pode dar e a sua irmã sugere que ele deveria retomar a carreira na marinha, algo que não agrada Llewyn de todo. Quando finalmente encontra o gato dos Gorfein, descobre que não é o gato deles e por isso está novamente preso a um gato de que se quer livrar. Entretanto, Llewyn descobre que uma rapariga com quem se envolveu terá decidido prosseguir com a gravidez, tendo referido apenas a Llewyn que iria abortar. Quanto ao passado de Llewyn, há dois episódios importantes. Em primeiro lugar, o seu pai tem demência e Llewyn não encontra nele uma figura de afeto, mas sim o vazio de alguém que já não existe. Para além disso, descobrimos que o seu pareceiro musical se suicidou, algo que terá tido um impacto brutal e duríssimo. Llewyn não parece estar a viver, ele na verdade, parece estar simplesmente perdido no sentido emocional da palavra. Age impulsivamente, não sabe bem o que quer fazer, não tem respostas assertivas quando o confrontam quanto aos seus falhanços, ele vagueia pelo mundo completamente deslocado das outras pessoas. Com exceção das atuações musicais. Nesses momentos, parece que tudo faz sentido e que nada mais existe senão música. Ouvimos e tornamo-nos parte daquele momento especial e tudo de mal no mundo deixa de existir. Depois a música acaba e parece que de repente é novamente um inferno para Llewyn. Ah, e quase me esquecia de referir, no início, após a sua bela atuação, Llewyn é chamado por um homem para as traseiras do café onde atuou, acabando por ser atacado por este homem. Descobrimos mais tarde que isto é o final da ação e tudo o que vemos retorna a uma semana atrás. Porquê começar assim? Talvez seja uma afirmação de que às vezes a vida nos atira para o chão e simplesmente não fazemos ideia por que raio é que isso aconteceu? O melhor é olhar para trás e tentar entender o que se passou. “O mundo divide-se em dois tipos de pessoas. Aqueles que dividem o mundo em dois tipos de pessoas e…” dizia Llewyn antes de ser interrompido por Jean que termina a frase com “os falhados”, que é a palavra que melhor define a maneira como Llewyn se vê.


O ponto de partida para esta personagem é mau. Não tão mau quanto outras pessoas que vivem situações terríveis, mas olhando para Llewyn, vemos que a sua perceção de si mesmo não é a melhor. O meio artístico é duro e está a levar o melhor dele. Não é por isso coincidência que as imagens são banhadas de tons frios. E o que se faz quando a vida parece não fazer sentido algum e as coisas que fazemos não levarem a nenhum fim satisfatório? Mudamos de cenário e por isso junta-se a dois músicos que se dirigem a Chicago, Roland Turner (interpretado de uma forma hilariante por John Goodman) e o taciturno Johnny Five. Durante a viagem, numa casa-de-banho, Llewyn olha para a parede e está escrita a frase “O que estás a fazer?”, que parece uma constante lembrança de todas as decisões de Llewyn. Ele parece estar preso ao passado. Provavelmente teria tido uma carreira de maior sucesso com Mike, o seu parceiro, se calhar não era tão amargo com a vida nem estaria constantemente num modo auto-destrutivo. Não podemos saber, mas podemos imaginar. Retornando à viagem, esta acaba de uma forma chocante pois, numa noite em que os dois passageiros se encontravam a dormir e o condutor, Johnny Five, decidiu parar para descansar, a polícia intervém e prende-o. Infelizmente para os restantes homens, Johnny levou a chave do carro consigo e não podem continuar o rumo. Llewyn decide abandonar Roland e também o gato que tão recentemente acolheu. Antes de fechar a porta do carro, vemos o gato a fitar Llewyn de uma forma que quase parece implorar a Llewyn que o leve. Qualquer pessoa pegaria no pobre animal e tentaria fazer o máximo que conseguisse para garantir o seu bem-estar. Mas Llewyn não está no seu melhor estado, ele nem consegue tratar dele próprio, quanto mais tratar de um pequeno gato. É uma pessoa que não acredita em si mesma nem na possibilidade de evoluir. E mais uma vez vemos Llewyn perdido. Nesta próxima sequência, Llewyn deambula pelo mundo e em todas as suas interações, não acaba frase alguma quando questionado por outros. Todas as suas respostas sofrem um corte mesmo antes de ocorrerem, pois é neste ponto que a personagem se encontra, face às perguntas sobre o que ele pretende ou sobre o que ele vai fazer, ele hesita pois a pergunta não é um simples “Pode pagar a contar, por favor?” mas sim “O que estás a fazer?”, é assim que Llewyn as perceciona. Quando mais uma vez arrisca no meio musical e deixa todo o seu sentimento numa atuação final, a resposta é “Não vejo muito dinheiro aqui” e “Você não é um líder”. Não foram frases ditas de uma forma maliciosa, mas sim a crítica de alguém que tem de obter rendimentos destes artistas. Sem entrar em mais detalhes, tudo acaba por ser uma espiral descendente para Llewyn em que tudo já era mau e continua a seguir um percurso maldito para um buraco terrível sem escapatória. Isto até ao aparecimento de imensos gatos. Já devem ter reparado na quantidade de gatos que aparecem ao longo do filme. Llewyn atropela um gato no seu caminho de volta a Greenwich, mas este gato parece sobreviver e seguir o seu caminho (possivelmente será o gato que ele abandonou, não recebemos nenhuma confirmação). O gato dos Gorfein, Ulisses, retornou sozinho à sua casa. E Llewyn viu um póster de um filme da Disney, “The Incredible Journey” em que três animais de estimação, entre os quais um gato, separaram-se dos seus donos e procuram o seu caminho para casa. Algo que parece ser muito metafórico da vida de Llewyn, sendo que interpreto estas criaturas como símbolo de independência e, no contexto da história, como uma reivindicação da vida, no sentido em que se toma um rumo e faz-se por chegar ao destino desejado. É aquilo que Llewyn parece fazer no final, pois volta a tocar a música que normalmente tocaria ao lado de Mike e é simplesmente ele com a música, na sua melhor forma. A atuação é aquela lindíssima que vemos no início do filme e retomamos ao ponto em que Llewyn é atacado. Agora sabemos que a razão foi dos insultos violentos de Llewyn direcionados a uma cantora que apenas desejava trazer a sua música à audiência amante de folk. Durante tudo isto, Llewyn perdeu a atuação de um jovem Bob Dylan que estava prestes a revolucionar a música folk para sempre. Que é também um momento triste para Llewyin pois a partir daquele momento, ele não tem qualquer hipótese no meio. Talvez seja por isso tão adequado que a música que passa neste momento seja “Farewell” de Bob Dylan, sobre deixar a nossa vida para procurar um sítio que poderá ser ou não o melhor para nós, ficando para trás os nossos verdadeiros amores.


Então, qual é o propósito de Llewyn Davis? Uma dissertação depressiva sobre os falhanços da vida? Possivelmente, mas não tão simples quanto isso. É adotado um prisma de angústia que nos mostra as tristezas da vida. Mostra o que é falhar, o que é estar completamente distante das restantes pessoas e mesmo assim elas se manterem ao nosso lado e também sobre o desespero da vida moderna. Temos uma visão da vida artística em que a retribuição pelos feitos é bastante diminuta. A música não é valorizada como um grande trabalho, mas sim como um acompanhamento para festas ou cafés ou um produto para ser consumido. E todos à volta deste desagradável, mas surpreendentemente charmoso (apesar das suas imensas falhas) protagonista o relembram constantemente dos seus falhanços e tentam puxá-lo para longe daquilo que ele ama. Já para não falar da dificuldade que é perder o nosso melhor amigo que ajudava a vida a fazer sentido, e de um ente familiar, cujo impacto carece de explicação. A vida não tem lógica alguma e é uma constante lembrança do mal. Parece ser isto que os irmãos Coen tentam dizer. No entanto, não procuraram mostrar o caos do mundo como em “Este País não é para Velhos” ou “Um Homem Sério”, mas sim mostrar como, nós, seres humanos, podemos viver neste mundo terrível. Porque, apesar de todos os momentos maus, é possível encontrar breves momentos de felicidade, quer seja na música ou no olhar esperançoso de algo tão pequeno como um gato, e é possível mudar. Llewyn não deixou de ser quem era nem de ver as piores partes do mundo mas aceitou que há muita infelicidade e que ele não pode mudar isso nem consegue mudar a forma como ele vê essas coisas (acredito que o mundo é tão cinzento pois Llewyn escolhe vê-lo dessa forma e sente-se melhor que o mundo seja assim pois se vir o bem, pode cair num fundo buraco quando chocar contra o pior), mas pode aceitá-las e avançar em frente, pode evoluir, e é isso que ele faz no final. A própria música folk estava farta de seguir o mesmo rumo e aí surge Bob Dylan. Quanto a Llewyn, dá a sua melhor performance desde há muitos anos e isso chega. Ele não tem de ser uma estrela mundialmente famosa. Ele tem de ser ele mesmo, quando tudo à sua volta parece estar no seu pior. Temos de lutar por evoluir e ser melhores. A vida não tem de fazer sentido. E se não fizer, nós continuamos cá, e por isso, fazemos o melhor que conseguirmos, independentemente dos resultados. Isso é o contrário da palavra falhado, que Llewyn parece tão pronto a aceitar sem uma luta, pelo menos inicialmente. O propósito de Llewyn Davis resume-se a lutar por ser melhor, por pior que o mundo seja.


Manuel Fernandes

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