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A Vida de Adèle: Sobre Crescer


Há algo bastante especial em seguir uma personagem durante várias fases da sua vida. De certa forma, é um espelho cujo reflexo é a nossa própria pessoa. A personagem de Adèle está tão bem desenvolvida que nunca vemos nela algo que não uma pessoa de carne e osso. É certo que estamos perante uma atriz e que ela é uma pessoa real, e nada do que vemos está para além do domínio da realidade no que toca às imagens que compõem este filme de 3 horas que não parecem prolongar-se tanto. Mas estando perante ficção, é muito fácil reparar que, neste tipo de histórias, existem frequentemente personagens que são feitas de papel, cuja personalidade é tão desprovida de idiossincrasias ou da simples beleza da existência que mesmo estando a ser interpretadas por humanos, nada nelas é mais do que um conjunto de ideias que em nada compõem aquilo que é a complexidade e associada simplicidade de ser. Adèle, Emma ou qualquer outra personagem que nos apareça à frente, mesmo que caindo no domínio do secundário ou até do terciário, são representadas de forma tão crua, apaixonante e desoladora que nunca duvidamos da sua existência. Adèle é alguém real que estava para além da tela e se esticar os braços, eu posso tocar-lhe. Não só o desenvolvimento das personagens, mas também os diálogos que as acompanham, gestos e outros elementos como a cinematografia que nos torna um acompanhante nesta aventura ou a montagem que coleciona os momentos essenciais para a compreensão das motivações, sucessos e falhanços, sem perder tempo no supérfluo, geram uma narrativa belíssima sobre aquilo que é descobrir quem somos.


Houve, e talvez ainda haja quando vejo referências a esta obra, um claro foco publicitário na homossexualidade da personagem titular. É certo que, especialmente no nosso país, este ainda é um assunto tabu, mas muitas vezes, a arte é atrapalhada pela necessidade incessante de advogar causas sociais em detrimento daquilo que efetivamente resulta, deixando de lado aquilo que forma uma pessoa para a tornar num símbolo social. Em conversa com um amigo sobre este filme, ele referiu-se a tal assunto de uma forma interessante. Afirmou que “muitas das vezes, retratam essas personagens de uma forma tão básica que parece que a homossexualidade é o único traço de personalidade que elas têm. E a meu ver a personalidade de uma pessoa é muito mais do que a sua sexualidade, aliás acho que a sexualidade interessa muito pouco”. Estas afirmações encapsulam muito bem o meu pensamento pois o que “A Vida de Adèle” faz é simplesmente retratar esta pessoa. Efetivamente é homossexual, mas ao contrário daquilo que a publicidade nos faz crer, ela é mais que um símbolo da homossexualidade. É só, como referi, uma pessoa, é a Adèle e Adèle mostra ser tanta coisa. Mostra-nos os seus gostos pessoais em termos de arte e gastronomia, mostra-nos as suas ambições futuras, mostra-nos a forma como se relaciona com os demais e isso é mostrar quem é. Só Adèle. O brilhantismo está na forma como nos dá uma vida através de momentos sem que possamos defini-la em palavras fáceis.


A adolescência é uma fase de descoberta do “eu”. Começamos a desenvolver de forma mais exuberante a nossa personalidade e os nossos pensamentos perdem os limites impostos pelos outros e ganham meios para caminhar livremente. É nesta fase que conhecemos Adèle, uma jovem rapariga introvertida. Tem o seu grupo de amigas com quem partilha poucos interesses em comum, vai descobrindo as temáticas que a cativam e conhece um rapaz interessante que as outras miúdas acham que seria o par ideal para ela. Ela começa a conhecê-lo, sai com ele, vão ao cinema, tornam-se íntimos, mas nunca vemos Adèle confortável. Ela parecia estar a desempenhar um papel para se tentar inserir naquilo que parece ser os patamares a atingir, como acabar o secundário, ter um namorado, começar a ganhar dinheiro, ter a sua casa, blá blá blá. Ideias falsas daquilo que deveremos ser, independentemente do facto de se adequarem à nossa pessoa ou não. Seguidamente a acabar com Thomas, há um momento bastante curioso que me fez apreciar ainda mais este épico em pequena escala. Adèle, tristíssima, não por ter terminado o relacionamento, mas sim por mostrar-se confusa relativamente à sua orientação sexual, busca uma caixa de chocolates que se encontra debaixo da sua cama para a ajudar neste momento. Pode parecer insignificante, mas são estes pequenos pormenores que puxam toda esta obra para o domínio do realismo. São o tipo de coisas que, estando a maioria de nós na mesma situação, acabaríamos por fazer em vez de monólogos ou simbolismos que representam a melancolia da personagem (não que estes também não possam estar na génese de grandes filmes, mas falamos de realismo). Este é o ponto de partida de Adèle. Está confusa, não sabe quem ela é, não sabe o que quer fazer nem o que deve fazer ou aquilo que será sequer melhor para ela. Alguns de vós, caros leitores, devem reconhecer vós próprios nestas palavras.

A outra personagem principal é Emma, o grande interesse romântico de Adèle. O problema em Emma é que nós nunca a vemos como ela realmente é. Apenas através dos olhos de Adèle, o que remete para um fenómeno divertido, pois nós próprios nunca olhamos para as outras pessoas da forma como elas realmente são, mas sim através do nosso prisma. Assim, Adèle vê em Emma algo quase utópico. Ela é segura de si mesma, ela é bastante decidida no que quer, ela não tem medo, ela é uma artista interessante. Emma é um sonho. Ou estará Adèle simplesmente apaixonada? Não quero dizer que Emma não possa ser tudo isto na realidade, até porque a forma como a relação evolui e como Emma se relaciona com os outros, permite-nos inferir que ela será verdadeiramente detentora de todas estas qualidades, mas há um certo quadro a ser pintado nela. É esta a beleza de estar apaixonado (e também a tristeza). Somos transportados para um outro universo em que as leis da física desvanecem e a fantasia domina. Também há uma razão para Emma ser assim. Reside na tolerância da sua família que lhe permitiu seguir uma carreira “ousada” (em termos de estabilidade financeira) e a não ter medo de si mesma, algo bastante demonstrativo disso foi o beijo carinhoso que dá a Adèle na presença dos seus pais, ficando a nossa protagonista envergonhada sem saber que tal era permitido. Isto é um contraponto perfeito para os pais de Adèle, pois tal como ela foi jantar à casa de Emma, a sua namorada também foi convidada a fazer o mesmo, e o ambiente é bastante diferente. Emma chega a esconder aos pais de Adèle a sua própria sexualidade. A sua perspicácia fê-la perceber que não seria o local para a verdade. Os pais de Adèle não são más pessoas e provavelmente após um choquem aceitariam a sua filha, mas o seu mundo é diferente do dos pais de Emma. O ambiente familiar e tudo que eles viveram (as suas partes boas e as suas partes más) é que os levaram a ter um pensamento mais restrito. Sou injusto nestas minhas palavras, mas foi a melhor maneira de explicitar a ideia.


Sem qualquer referência temporal, os anos avançaram. Adèle trabalha numa escola e vive com Emma. É fantástico como o tempo passa neste filme. Desconcertante no início, mas acabamos por entender o que se passa devido a todo o ambiente à volta. Pelas roupas e penteados que as personagens usam (ou melhor dito, nos seus estilos que mudaram) e pelas situações em que elas se encontram. Não nos são dadas pistas fáceis nem subtis, temos de fazer algum esforço para tentar entender o que se está a passar e isso leva a uma gratificante experiência cinemática. Como jovem adulta, há certas coisas que acho que são fulcrais em Adèle. Primeiro, ela foi a musa de Emma num certo quadro que a acompanhará para o resto da sua vida. É nesta pintura que vemos que a mesma paixão que vimos nos olhos de Adèle está presente também nos olhos de Emma pois todos aqueles que se referem a este quadro falam da forma como Adèle foi captada ou entenda-se o amor que transpirou pela arte. Segundo, Adèle que na sua adolescência mostrava interesse na literatura, começou a escrever, mas quando questionada, não aparenta estar segura do que fez ou com vontade de discutir o seu trabalho.

Então em que ponto estamos? Adèle trabalha numa escola primária e coloca a sua relação acima de tudo, ficando o desejo da escrita para trás. Isso é algo perigoso na minha opinião pois quando deixamos de nos focar em nós próprios também perdemos a capacidade de dar o melhor de nós aos outros. Algo importante para o enredo também acontece nesta altura. Após um dia de trabalho, Emma deixou uma mensagem a Adèle em que refere que vai ficar a trabalhar até tarde com uma colega, algo que faz disparar o ciúme. Assim, acontece algo que nos magoa pois sabemos que é o fim de toda uma fundação com longos anos de trabalho e dedicação. Adèle decidiu sair à noite e envolveu-se com um colega de trabalho. Não porque tem esse interesse, mas porque se sente magoada com os pensamentos de que Emma estará a traí-la e quer simplesmente magoá-la para que ela sinta o mesmo. Justifica alguma coisa? Nem por isso, mas percebemos o que ela sente. Como vemos tudo pelos seus olhos, nós tornamo-nos Adèle. A discussão seguinte é tão emocionante que quaisquer palavras que use não poderão descrever o génio das atuações de ambas atrizes. Uma discussão tão verdadeira e desconcertante, pois sabemos que não há retorno mal elas digam as últimas palavras. Emma mostra os seus valores e a sua força, já Adèle mostra a ingenuidade jovem não conseguindo confrontar o facto de que o amor da sua vida (pelo menos da sua vida até àquele momento) não quer estar mais consigo e tendo ela na sua relação o aspeto mais fundamental da sua pessoa, toda a sensação de que seguramente compreendia o mundo desmoronou-se. Há uma cena que foi escolhida de forma excelente para ser colocada de forma posterior a este evento. Num dia de praia, Adèle vai para o mar e coloca-se na água, ficando à deriva sem termos a noção do que se passa em seu redor. A câmara faz um close-up na sua cara e apenas vemo-la rodeado do mar azul que é aquilo que mais conforto lhe traz durante uns breves momentos. É breve, mas é ali que está a paz de espírito necessária para nos ajudar a ultrapassar os maus momentos. Por vezes, só precisamos de encontrar o nosso mar, aquele que nos trará paz e temos de nos agarrar a ele. Seria tão bom poder terminar assim, mas Adèle guardou uma última tragédia para nos destroçar. Decide reencontrar-se com Emma, numa tentativa desesperada de reatar a paixão entre elas. E por mais que queiramos que assim as coisas sejam, este filme está dentro do domínio do realismo… e o realismo não nos dá finais felizes se a lógica não o permitir. É tão doloroso este encontro. Cada palavra errada de Adèle e cada respostas não verbais de Emma criam uma experiência péssima pois a ideia de que as coisas podem voltar ao normal é uma quimera. As coisas não conseguem ser coladas à força, têm de ser as peças certas. E estas peças que outrora serviam muito bem, agora não condizem e tentar juntá-las só traria sofrimento por adiar. Aceitar que as coisas terminaram é o passo mais difícil e é aquele que de mais maturidade necessita. A última imagem que temos de Adèle é a de ela a caminhar com um vestido azul em direção a não sabemos onde, após um último e mais comedido reencontro com Emma. Gosto de acreditar que o vestido azul será algo relacionado com a calma que ela encontrou no mar azul que a abraçou durante segundos. E que mesmo sendo esta a última vez que a vemos, ela não chegou ao fim da sua história. Ela é uma pessoa, a sua vida ainda está a começar.


Manuel Fernandes



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