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A Última Tentação de Cristo: A Resistência de um Homem



Muito pouco surpreendentemente, o livro mais vendido de todos os tempos é nada mais, nada menos que a Bíblia. Na tradição da adaptação de obras literárias ao cinema, não é de espantar que os textos religiosos que a compõem acabariam por sofrer o mesmo tratamento. Uma coletânea desta dimensão acabou por fazer parte dos primórdios do cinema, tendo a minha pesquisa ditado que o primeiro filme bíblico data ao ano de 1897. Fomos confrontados com imensas representações daquele que, a seguir a Deus, é o grande protagonista da Bíblia, Jesus Cristo. E dessas imensas vezes que o vimos no grande ecrã, muitas vezes trata-se de alguém sobre-humano no que toca aos seus excecionais atos de bondade e de perdão dos pecadores e nos atos miraculosos que bem impregnados estão na nossa memória e cultura. E com isto caímos, na minha opinião, na grande falácia de que Jesus não era humano. Baseando-me na minha compreensão e interpretação dos testamentos, cartas e outros textos Bíblicos e na adaptação que Martin Scorsese fez da controversa obra “A Última Tentação de Cristo” (que na sua estreia valeu ao filme ser banido ou censurado em diversos países, estando ainda banido no Chile, Filipinas e Singapura, nos dias de hoje), chego à conclusão que seria errado olharmos para Jesus Cristo como uma simples figura divina que sempre fora provida da prática do bem desde o momento que nasceu. Quer pertençamos a um credo religioso e seja para nós evidente a existência de um Deus (ou mais) ou rejeitemos completamente qualquer ligação a isso, é inegável a existência de um homem chamado Jesus Cristo que contou parábolas, teve estas ações que tanto conhecemos e morreu crucificado na sua curta vida. Note-se a existência da palavra homem pois este é o termo essencial daquilo que Martin Scorsese quis (e muito bem) explorar nesta violenta e explícita obra cinematográfica.


Tal como em Taxi Driver, o foco está no desenvolvimento de uma personagem que está deslocada dos outros. Jesus Cristo é um homem em conflito interior. Ele deseja ser aquilo que talvez não ele, mas sim os outros expectam que ele seja, o Filho de Deus, o Messias prometido. Mas Jesus também tem as suas fraquezas. No início, é mostrado que ele colabora com os romanos e constrói e fornece as cruzes usadas nas cerimónias monstruosas que são as crucificações. Jesus transporta as cruzes que serão o final de muitos e acaba por ser o alvo de ódio dos outros. Maria Madalena cospe nele e não é a única, havendo até crianças que jogam pedras nele. E só esta representação permite a audiência ver a figura que tantas vezes foi tida como o Maior dos Homens como alguém verdadeiramente semelhante. Ele tem medo, ele está perdido, acaba até por ter algum ódio por si mesmo e daí o seu trabalho a favor de ordens romanas como reação contrária àquilo que deveria fazer e tanto o assola. Ele não é diferente de todos os outros. A vida dele está recheada de tentações: medo; depressão; luxúria. É-nos dada a impressão que ele teve uma relação com Maria Madalena através da forma como está um perante o outro, mas face aos descobrimentos do próprio, Jesus resiste aos avanços sexuais dela. “Nunca tiveste coragem para ser homem” disse ela com um simultâneo asco e tristeza.


À medida que a confiança vai crescendo, Jesus, acompanhado pelo seu grupo de discípulos (que tomaram a decisão de o seguir, após ele ter salvo Maria Madalena de uma multidão furiosa que a apedrejava por se deitar em dia Santo com romanos), tenta espalhar uma mensagem de amor ao próximo e embarca numa caminhada. A parábola do Agricultor e a Semente é espalhada a um grupo pelo qual passam mas a sua mensagem acaba por ser perdida. Chamam-no de lunático até. Talvez não fosse a altura correta. Acaba por encontrar, nas margens de um rio, João Baptista e todos os renegados da civilização em tal cerimónia que rapidamente faz lembrar uma seita. Jesus percebe que terá que encontrar o seu chamamento sozinho e ruma para o deserto onde acaba por ser tentado por Satanás. É confrontado com os seus desejos íntimos. Desejo de uma mulher e uma família, desejo de ter poder sobre os outros e afirmar-se como alguém. É dada a decisão de tomar um caminho fácil de violência (no símbolo de um machado) ou o complicado de compaixão representado pelo coração. Quando retorna aos seus discípulos, a sua decisão é evidente pois Jesus arranca o seu próprio coração à frente dos outros. Ele decide o seu próprio caminho, e é finalmente o homem capaz de espalhar a Mensagem. Daqui em diante, já não vemos a figura previamente apresentada.





Vários milagres são a obra da sua mão, inclusive a afamada ressurreição de Lázaro. O discurso público ganha outra força. Confiança domina a sua voz e com esta mudança começa uma revolução - “Sou o fim da lei antiga e o princípio da nova”, as suas palavras instigam medo. As suas ações contra a podridão da sociedade são radicais, e as promessas de um Reino fértil de amor são convidativas. Faz tudo parte do Plano Deus que será concluído com a morte de Jesus Cristo – “Vou batizar-vos todos com fogo!”.


Tal como reza a história, no meio de tanta agitação política, Jesus é traído e após a afamada conversa com Pôncio Pilatos, é dada uma coroa de espinhos ao Rei dos Judeus. Lentamente, e com as poucas forças que ainda possuía, carrega a cruz (que antes trazia para o julgamento final dos outros) que selará o seu destino e concluirá o Plano Divino. A multidão ri-se do seu Rei. Tão poderoso e não escapou da morte. “Perdoa-lhes”, é o que resta dizer. E o medo apodera-se – “Pai! Porque me abandonaste?”. É aqui introduzida a Última Tentação, neste momento de maior fraqueza como nunca havia experienciado.


E se nada disto tivesse acontecido? Um belo anjo, uma quase brilhante figura parece colocar esta questão. Após tanto sofrimento, ele já provou ser merecedor do Reino dos Céus, não tem que sofrer mais. É idílico e uma contrariedade de toda a sua existência até ao momento. A coroa é retirada. Os pregos que o perfuraram saem quase como se nunca esses buracos tivessem sido abertos. Caminha com incompreensão para uma nova vida.


Jesus poderia ter casado com Maria Madalena e consumado os seus desejos carnais. Poderia ter sido pai. “Mas Deus matou-a” afirma o anjo. O contrassenso em tal ação é evidente. Mas se Deus pode salvar o seu Filho da Morte, também pode deixar morrer outros em troca. Talvez o anjo não terá sido enviado por Deus, que na sua omnipotência e misericórdia não pregaria tão triste partida… A vida para Jesus não seria ao lado de Maria Madalena, há que se contentar com outra mulher, com outro filho e com outro ofício, não como líder mas um simples trabalhador, com uma vida simples e sem a Grandiosidade que outrora viveu. Quando ouve dos seus feitos serem pregados, rapidamente se esquece que todos os seus pecados foram absolvidos e com eles, tudo o que fizera também. É Paulo quem prega sobre as ações de Jesus de Nazaré, mentiras no entanto. Jesus confronta-o sem sucesso pois agora ele já não era o Messias. Paulo afirma que dirá o que for preciso para trazer a Salvação aos Homens mesmo que a sua fundação seja na mentira. Não era o mundo que Jesus desejou. Não era o Reino dos Céus na Terra.


Na sua senioridade e quase no leito de morte, os seus antigos discípulos reúnem-se à sua volta. Jerusalém está em chamas e a discórdia e violência reinam. Por fim, chega Judas Iscariotes que o chama de traidor. Este não era o Plano traçado. O medo foi mais forte e após tudo o que fez a última ação foi falhada e com isso o caos reina. Judas revela que o anjo era Satã. Incrédulo, Jesus resiste contra a Morte que cada vez mais se aproxima. “Pai, aceita-me de volta! (..) Quero ser o teu Filho! (…) Eu quero ser crucificado e ressuscitar! Eu quero ser o Messias!” é o grito pela Salvação como Último Sacrifício e como resistência à Tentação. “Está consumado” – sorri Jesus enquanto profere as palavras, vendo que voltou à Cruz e que morrerá. O Plano de Deus foi atingido. O que serviu como motivação? A vergonha? O desejo do Bem? A procura de poder como figura de Messias e não um simples homem que viveu satisfeito e morreu sem importância no mundo? Um sino glorioso balada como sinal do Fim da vida de um Homem e o começo para um Povo.


Manuel Fernandes




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