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Aconteceu no Oeste: a desconstrução do western



O faroeste americano do século XIX, ora desolado, ora em contínuo crescimento, serviu de inspiração para um dos mais famosos géneros do cinema americano, o western. Cowboys e pistoleiros, heróis que lutam pela justiça num mundo solitário e agreste movido pela vilania, ganância e cinismo, eram as estrelas que entusiasmavam as audiênciask quer na televisão, quer no grande ecrã. John Wayne, Gary Cooper, Henry Fonda, James Stewart, entre outrosk incorporavam os ideais homéricos e hercúleos que todos ambicionavam. Aí entrou o Spaghetti western, a resposta italiana ao género, popularizado pelo realizador Sergio Leone com a “Trilogia dos Dólares”. Leone trouxe caras desgrenhadas, ambientes duros, melodias sonantes, bastante violência e sangue, elementos que moldaram de forma inovadora o género, desafiando a moral humana nestas histórias. Terminado o seu trabalho no género (ou assim pensava), Sergio Leone desejava filmar um épico sobre a América, mas foi-lhe pedido mais um western. Assim nasceu a trilogia chamada “Era uma vez” na qual se incluem os spaghetti westerns “Aconteceu no Oeste” e “Aguenta-te Canalha!”, e o épico “Era uma vez na América”. O primeiro terá sido “o filme que matou o western”.


Semelhante a uma sinfonia, o filme inicia-se com uma ouverture. No entanto, esta não invoca grandeza alguma. Não ouvimos um maravilhoso tema de Ennio Morricone que abriu obras como por exemplo “Por um Punhado de Dólares”… talvez nem ouçamos algo! Três homens aguardam numa estação de comboio e a tensão acumula-se. Que quererão? Que se vai passar? A espera parece interminável. Passados 10 minutos, o comboio chega e com ele uma harmónica soa. Um misterioso conhecido como Harmonica pergunta a quem aguardava por ele se lhe trouxeram um cavalo. “Parece que temos um cavalo a menos”, responde com risos. Sem pestanejar vem o contraponto: “Trouxeram dois a mais”. Este diálogo e todos os eventos (ou a ausência deles) que presenciamos são a afirmação daquilo que será a nossa experiência. Não é um westernde triunfos do certo sobre o errado. É seco e violento. Sem brincadeiras, fantasias ou maravilhas. Há um duelo. Quatro homens, três contra um, mas só um sai vivo. Curiosamente o que se encontrava em desvantagem numérica. E assim, apresenta-se o primeiro protagonista, sem qualquer indicação se este será o herói que devemos idolatrar.


A sequência seguinte também apresenta mais um protagonista. Também há morte, mas agora nem houve um combate. Em Sweetwater, numa casa habitada por um homem, o seu filho e a sua filha (ambos crianças), surge um anjo da morte. A profecia cumpre-se e pouco depois vem a chacina. Esta família, que nem teve direito a últimas palavras, rapidamente se extingue e aí vemos o profeta. Um aterrador e inesquecível tema musical acompanha o desvendar deste vilão, interpretado nada mais nada menos por Henry Fonda, ator conhecido por representar heróis, cheios de bondade no seu coração. Fonda mostrava agora uma frieza calculista no seu olhar como nunca o tinha feito, interpretando o vilão Frank.


Finalmente, os outros protagonistas são introduzidos. Primeiro, Jill Mcbain, uma antiga prostituta de Nova Orleães, aparece em cena com o intuito de chegar a Sweetwater, terreno possuído pelo seu marido, Brett Mcbain, que, juntamente com seus filhos, havia previamente sofrido um triste encontro com o destino. Seguidamente, o bandido Cheyenne aparece acorrentado, provavelmente em fuga da lei. Por fim, o poderoso magnata Morton, que move o mundo à volta do seu dinheiro (a única coisa que pode impedir uma pistola de disparar segundo ele), que contratou Frank como seu mercenário pessoal para atingir os seus propósitos. Em todas estas personagens reconhecemos as figuras típicos dos westerns: o herói, o vilão, a prostituta, o bandido e o magnata. E não só nas personagens, no enredo, ambiente, roupas…, mas Leone traz-lhes um novo significado. Muda as cartas do jogo e não temos simplesmente uma luta entre o bem e o mal na qual desejamos a finalização do que nos foi prometido, a derrota do vilão e a vitória do amor. Temos um complexo jogo de motivações pessoais movidas pela ganância, vingança, ingenuidade ou desejo de liberdade. Não temos duelos arbitrados como mostras de coragem. Não temos calorosas performances musicais em tempos de procura de força para assustadores combates do amanhã com os abomináveis adversários. Não temos assaltos a comboios com o intuito de roubar cofres que serão a pedra basilar da premissa. Não temos histórias de amor que começaram com um embate dos sexos. Temos vários elementos do western que foram trocados, que ganharam uma nova vida de forma a servir um complexo enredo (dividido em duas partes), que procurou pegar na história do Velho Oeste e trazê-la a um fim glorioso, de uma forma que o próximo grande western teria que ser dotado de uma capacidade de se reinventar a si mesmo como nunca antes visto, se quisesse vingar na História do Cinema.




Para complicar, Leone não nos dá diretamente a premissa do enredo (ou o próprio enredo até). Porque terá Morton contratado Frank para matar Brett Mcbain? Qual a disputa entre Harmonica e Frank? Aos poucos e por vezes de forma não linear (algo bastante incomum no género), vamos percebendo a resposta à primeira pergunta. Os caminhos-de-ferro, símbolo da civilização e da prosperidade do futuro passarão por Sweetwater. Quem controlar o terreno, fará uma fortuna, “centenas de milhares de dólares”, mais até “milhares de milhares” – “Chamam-lhes milhões”. O conflito desenvolve-se com o objetivo de controlo do terreno para todas estas personagens com a exceção de uma, Harmonica, cujas motivações serão desvendadas no momento adequado.


No meio destes conflitos e várias jogadas de poder, cada personagem vai conhecendo o final da sua parte. Morton é o primeiro. Este acaba por ser capturado no seu próprio comboio e é aqui que morre da forma que viveu, com o dinheiro a traçar-lhe o destino. Se nele via a sua fuga da situação em que se encontrava, a realidade intrometeu-se e foi o capital que acabou por ser o fruto da discórdia e o seu infortúnio final.


Para outros, a conclusão dos seus destinos será mais espetacular. O duelo final entre Frank e Harmonica é memorável. À semelhança de “Por mais alguns Dólares” e “O Bom, o Mau e o Vilão”, os intervenientes envolvem-se quase numa dança, indo para as suas posições iniciais neste tango que terá um desfecho irreparável. Mas não vemos na cara de Harmonica tensão alguma. Na verdade, está sereno, como se finalmente fosse cumprir o seu destino. Finalmente percebemos. Reminiscências da sua infância mostram o terrível evento que moldou para sempre a sua vida. O puro sadismo de Frank foi essencial em traçar o percurso que Harmonica iria percorrer no seu intuito de corrigir de certa forma o que o passado lhe tirou. Eles disparam e vemos as reações de Jill e Cheyenne, elementos exteriores do conflito. O pós-duelo dá-se com a devolução de uma harmónica ao derrotado, a conclusão de uma promessa já há muito esperada.


O filme finaliza com prosperidade. Jill, agora proprietária de Sweetwater conquista liberdade e poder que nunca imaginaria atingir na sua vida. E seria aqui que tendo o herói dominado o vilão que se poderia juntar ao seu amor. Foi para aqui que a sua demanda o trouxe, diria o típico western. Mas não seria natural, as coisas não se desenvolveram assim. Nem para Harmonica, nem para Cheyenne que durante a longa-metragem serviu muitas vezes de uma balança da moralidade. Pensando sempre em si quando teve ações ditas heroicas poderia parecer. Talvez neste bandido (cuja inspiração foi o carismático vagabundo de “A Dama e o Vagabundo”) houvesse bondade autêntica.


Está na hora de separar. Sweetwater tem de crescer e dar origens a uma nova cidade, diferente do que já se viu. E a raça antiga? Os homens que viveram suas brilhantes aventuras no faroeste? Terão de percorrer o seu caminho. Assim fazem Harmonica e Cheyenne. E gostaríamos de acreditar que mesmo esta raça moribunda encontraria o seu próprio espaço neste novo mundo. Mas não é assim… Cheyenne, talvez aquele que mais representa este estilo de vida, não conseguirá ir mais longe pois foi mortalmente ferido num embate com Morton. Ainda tenta ir um bocado mais longe, afastando-se de Sweetwater, longe o suficiente para que Jill e esta nova civilização não o vejam nos seus últimos instantes. Talvez Harmonica vá mais longe e ainda dê esperança a alguns aventureiros, mas a verdade é que “Aconteceu no Oeste” não fez uma simples desconstrução deste género cinemático. Nem foi o filme que apenas matou Cheyenne. Foi o filme que matou o western.


Manuel Fernandes




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