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Aguirre, a cólera de Deus: Ficção como Documentário



Neste ano de 2020, tenho começado a descobrir os trabalhos de Werner Herzog, e ele mesmo também. Este realizador, tem uma das vidas mais interessantes que já alguma vez conheci, por exemplo as suas viagens à volta do mundo à procura daquilo que ele chama “verdade extática” (e se pesquisarem a sua vida, para além do cinema, irão descobrir uma pessoa fascinante). E se há algo que prova essa procura por imagens reais, é o brilhante “Aguirre, a cólera de Deus” cujas histórias da filmagem são tão espantosas quanto o próprio filme.


Apesar de se ter servido de personagens históricas, a narrativa de “Aguirre, a cólera de Deus” é ficção. A premissa? No ano de 1560, uma expedição militar espanhola liderada por Gonzalo Pizarro, acompanhada de centenas de escravos indígenas, procura a cidade perdida de El Dorado. Desde o início que sabemos que se trata de uma mentira, que não há nenhuma cidade do ouro, mas estes homens não o sabem. Devido às dificuldades em levar um grupo tão grande para recursos insuficientes, Pizarro junta um grupo para explorar o caminho desconhecido e trazer informações novas. Este grupo será liderado por Don Pedro de Ursúa, com Don Lope de Aguirre como o segundo em comando, Don Fernando de Guzmán como representante da nobreza espanhola e o Irmão Gaspar de Carvajal para espalhar a palavra de Deus. Desde o início que paira uma aura de paranóia, como se algo não fosse correr bem. As condições são perigosas desde o início, e a personagem de Klaus Kinski, o Don Lope de Aguirre, está surpreendentemente silenciosa. Num diálogo entre Don Pedro de Ursúa e a sua mulher, Inés de Atienza, ela avisa-o do perigo que é manter um homem como Aguirre nesta expedição. Ursúa refere que ele nunca se atreveria a trair a coroa de Espanha, algo que Inés responde com “Já não estamos em Castela”, há um corte e passamos para a interação entre Don Lope de Aguirre e a sua filha. Aguirre segura um pequeno tamanduá de uma forma muito carinhosa, explicando que este animal vive a dormir a maior parte da sua vida. Quase parece que este homem seria incapaz de sequer pensar em atacar aqueles que são os seus pares. Mas em todas as anteriores cenas, reparamos que havia sempre algo de errado com Aguirre. Sempre isolado, observador, silencioso. A partir destas cenas, ele começa a revelar a sua intensidade. A incentivar à revolta e à conquista de El Dorado, para se tornarem numa nova nação, independente da Coroa Espanhola. Está instaurado o motim, apesar de Aguirre encorajar o incompetente Don Fernande de Guzmán a tornar-se no novo líder da expedição. Mas todos sabemos que é Aguirre quem está por trás de tudo. Não só a audiência, os soldados também o sabem, mas não há mais nada a fazer, não há opção melhor.


Os eventos vão-se desenrolando e vamos assistindo à quebra das várias personagens. Umas por estarem cegadas pela ideia de ouro, outras por verem o seu coração partido, outros dominados apenas pela fome e incompreensão, acabam todas por atingir o seu limite e descer do trono do homem civilizado. Daí que compreendamos o porquê de Inez decidir entrar na selva para ser morta pelas tribos inimigas que lá vivem e foram uma presença fantasmagórica e assassina em todo o filme. Ela vai com um vestido que se assemelha ao de uma princesa. Um vestido vermelho completamente diferente do azul puro que a cobria completamente. Será que estamos a ver bem as coisas? Aguirre é aquele que parece que desde o início sempre foi louco, mas que a selva lhe permitia mostrar como realmente era. Por exemplo, face a um “infiel” que diz blasfémias, enquanto todos atacam pelo homem ter “cuspido” na palavra de Deus, Aguirre olha, quase sem se preocupar, como se ele sempre soubesse desde então que estaria num patamar diferente na religião. Algo estranho para alguém do século XVI. A revelação vem num dos mais espetaculares momentos do filme em que Aguirre, olhando diretamente para a câmara, parece trespassar a nossa alma com os seus cruéis e brilhantes olhos azuis, e diz que ele mesmo é a cólera de Deus, “Se eu, Aguirre, quiser que os pássaros caiam mortos das árvores… então os pássaros cairão mortos das árvores. Eu sou a Cólera de Deus. A terra em que eu ando vai ver-me e tremer. Mas quem seguir a mim e ao rio, terá riquezas infindáveis. Mas quem desertar…”. Um monólogo tenebroso, que antevê os próximos minutos em que todos os sobreviventes parecem despersonalizar e tornar-se em corpos vazios. No final, só resta Aguirre e um exército de pequenos macacos que fogem dele, enquanto passam por um barco gigantesco preso no topo de uma árvore. O senso da realidade desapareceu e só resta morrer.


O mais impressionante está na forma como Werner Herzog decidiu filmar. Muitas vezes a câmara é operada à mão, como se fosse se a câmara fosse os olhos de um soldado que observa tudo. Dito de outra forma, nós, a audiência, fazemos parte desta expedição, e o melhor seria fugir dela, possivelmente estaríamos melhor na selva do que com estes homens, mas não há forma de escapar. Quando assistimos às espantosas e perigosas viagens de jangada pelos violentos rios, a câmara treme para cima e para baixo. O mais seguro seria fazer num estúdio e filmar à distância, para podermos ver tudo à volta, mas Werner Herzog preferiu uma abordagem realista. Tudo que acontece é real, nada de efeitos especiais. Quando algo explode, não tenham dúvidas, aquilo foi mesmo uma explosão. Quando a jangada fica presa num turbilhonamento, os homens estão mesmo presos. Werner Herzog, nos comentários do filme diz “É como se estivéssemos com uma câmara em 1561”, e está completamente certo. É um filme assustador não só por nos fazer sentir que estamos lá, mas porque é completamente real. E sempre que há um close-up, ficamos completamente alerta, ao olhar para as expressões das personagens, cada uma diferente da outra. O ar angelical e sentimento de justiça de Inez, a expressão apática e ignorante de Don Fernando de Guzmán, ou face de Don Pedro de Ursúa que inicialmente mostrava uma calma e compreensão do mundo, e depois é uma constante lembrança de dor e violência. Já a música, esta é da autoria dos alemães Popul Vuh, num género descrito como Krautrock, definido como uma forma experimental de música rock. E é difícil definir como é a música que estamos a ouvir. Tem um tom de psicadélico, mas não o é. Ouvimos um coro e um órgão, mas não é música litúrgica de Bach. É como se estivéssemos a alucinar, enquanto ouvimos os sons da natureza juntamente com estas vozes, estas notas invulgares.


E pudesse eu falar com alguma eloquência e conhecimento sobre o design de produção e o guarda-roupa, com certeza que o faria, pois são absolutamente impressionantes (as roupas foram até criadas pelo próprio Werner Herzog), mas confesso que não seja a melhor pessoa para descrever estes aspetos. As imagens falam por si. Quem viu “Apocalypse Now” poderá reconhecer alguns elementos similares em ambos os filmes, Francis Ford Coppola foi influenciado por “Aguirre, a cólera de Deus”, uma viagem de jangada pelos perigos da selva, a lenta descida pela espiral da loucura, o completo sentimento de dissociação da realidade. Apesar de eu sentir desde o início que estaria a endoidecer. Nunca me senti atacado por sentimentos excêntricos, quer fosse tristeza, alegria, raiva. Apenas me mantinha impressionado com a composição das imagens e num estado quase de dúvida quanto à realidade, como se eu fosse um soldado a bordo daquela jangada, já sem comer durante dias, liderado por um doido. Como se estivesse com febre ou simplesmente a desfalecer, é uma experiência brilhante de um dos melhores realizadores da História.

Manuel Fernandes

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