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Ao Correr do Tempo: Vagueando sem Destino

Atualizado: 27 de set. de 2020


No dia 27 de Agosto, tive o prazer de ir ao espaço GNRation e assistir a um filme incluído nas sessões “Cinema no Pátio”. Devido às restrições para cumprir os requisitos de saúde, a sessão foi realizada, não num pátio como nos outros anos, mas sim num espaço fechado com bastantes limitações no que tocava ao número de pessoas e disposição dos lugares. Foi a primeira vez que voltei a ver um filme num espaço fechado (que não a minha casa) desde Fevereiro diria (revi “O Meu Vizinho Totoro”, no mesmo mês, numa sessão ao ar livre, no entanto é algo diferente) e foi uma experiência espetacular poder voltar a ver um filme numa tela tão grande, onde os meus olhos podiam procurar os vários pormenores que estavam escondidos por toda a tela.

“Ao Correr do Tempo” de Wim Wenders pega na tradição americana dos chamados road movies, em que as personagens partem numa viagem onde o tempo e o espaço deixam de importar. Os dois protagonistas conhecem-se de uma forma improvável, Bruno Winter, que vive na sua grande carrinha, indo de cidade em cidade para consertar os projetores dos pequenos cinemas que vão sobrevivendo numa Alemanha dividida a meio, conhece Robert Lander, um homem esgotado das lutas que disputou com a sua própria vida, quando este atira o seu carro contra um lago, possivelmente numa tentativa de suicídio que o seu coração não queria levar avante. Os dois começam uma viagem pelas estradas da Alemanha, acabando por conhecer um montão de personagens (ou por reencontrar figuras do passado) que nos relembram o que é a vida. Wim Wenders decidiu que este seria um filme bastante longo. Com quase três horas de duração, esta foi a abordagem mais correta pois assim ele conseguiu afinar bem o tom e ritmo que mais nos fazem sentir parte de uma viagem errante e inesquecível. Sentimos o passar do tempo e a sua lentidão, sentimos as rodas sempre a girar, olhamos para a estrada que não parece ter fim. Os dias começavam com um brilho contagiante, com o branco a irromper nos meus olhos. Gradualmente a imagem ia escurecendo até chegar à noite, em que por vezes, estava tudo tão negro que me dificultava a visão e a capacidade de distinguir o que se passava na tela, até que um novo dia chegava e os raios do sol rasgavam o céu sob a forma de um brilhante branco que queimava a minha vista, efeitos que são cortesia da lindíssima imagem a preto e branco que Wim Wenders tão carinhosamente avisou que seriam as cores da película, nos créditos iniciais (não me recordo de ver isto noutro filme). Esta cadência na passagem de cada jornada cria uma sensação bastante rítmica e leva mesmo à manipulação da nossa mente. É um efeito engraçado, pois eu quase senti que se teriam passado semanas enquanto via o filme, como se eu mesmo estivesse com Bruno e Robert a vaguear por estas rotas, galhofando com eles, parando para beber uma cola e comer uma bratwurst, ou para saltar no meio de umas dunas que lembram um deserto, longínquo da civilização.

De certa forma foi estranho sair do local e reparar que no exterior era noite e que estava a chover. Quando a emoção domina a lógica. Outro aspeto fabuloso foi a composição musical. Os mesmos quatro ou talvez cinco temas eram repetidos ao longo do filme, todos tão emocionantes e a refletir tão bem a psique dos dois homens que os momentos sem diálogo, apenas com música a dar-nos algum sinal sobre o que iria na cabeça deles, eram suficientes e estavam repletos de pistas para a compreensão cinemática. Talvez o meu preferido será um tema psicadélico, quase ao tom de uns sombrios Pink Floyd, que se ouvia nos momentos mais introspetivos, o meu preferido quando Robert está deitado dentro da parte traseira da carrinha e, perdido nos seus pensamentos, olha para cima e vê uma pequena abertura retangular no teto que permite vislumbrar o céu cujas nuvens se assemelhavam ao interior de um candeeiro de lava, tão misterioso e hipnotizante. E nesse momento de incompreensão, era possível perceber exatamente quem era Robert, um homem desgastado pelos erros seus e dos outros, agora sem vontade de tentar resolver o que passou, era apenas uma figura que se desmaterializava.


Dentro de tantos aspetos que me impressionaram, talvez um dos que destaco foi o facto de todo o filme (com exceção da cena em que Bruno e Robert se conhecem) ter sido improvisado. Todos aqueles ricos diálogos, com silêncios, olhares expressivos e tão cheios de emoção e evocativos de homens quebrados pelos momentos que antecederam esta ressurreição como um duo viajante, foram fruto de uma simples decisão de permitir bastante liberdade aos intérpretes, algo que pode correr terrivelmente mau, mas que aqui foi absolutamente brilhante, alguns dos momentos até devem ter deixado Wim Wenders e o resto da equipa de filmagem completamente pasmados (quem viu o filme, saberá do que falo). E isso acabou por ser crucial pois permitiu desenvolver as personagens de uma forma bastante natural. As motivações não foram logo reveladas, ninguém se sobrepunha ao outro de uma forma fácil, em vez havia que lutar pela sua voz como nos verdadeiros diálogos e as várias respostas gesticulares e não-verbais eram evidentemente genuínas. Trata-se de um filme em que, tal como a tradição da maioria dos filmes do género manda, as personagens acabam não por conhecem a estrada em que andam, mas sim a eles mesmos. E, no entanto, mesmo seguindo esta fórmula já desgastada nos nossos dias, este filme já longe do meu tempo nunca pareceu ser nada que não original e distinto dos muitos outros que usam e abusam do desconhecido que é viajar. E a nossa própria compreensão depende da forma como escolhemos ver as coisas, como as nossas experiências moldaram o nosso pensamento. É daqueles que dá aso à discussão, em que o destino das personagens é-nos privado, mas todos sabem o que aconteceu, porém, todos com respostas totalmente diferentes uns dos outros. É assim a experiência cinemática. Como é bom ter percorrido tantos quilómetros sem ter saído da minha cadeira.


Manuel Fernandes

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