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As Duas Inglesas e o Continente: O Amor É Uma Tragédia


Os filmes de François Truffaut têm uma certa qualidade literária. Não parecem reger-se pela estrutura típica dos filmes de ficção, nem se cingir a um tema só. São como a personificação visual das palavras de um livro na qual podemos ver as suas personagens ganhar vida. Agora vem o remate daquilo que poderá parecer uma piada. “As Duas Inglesas e o Continente” é uma adaptação de um romance do mesmo nome, do autor Henri-Pierre Roché, e vocês pensam que é óbvio que este filme tenha um tom literário, é a adaptação de um livro! No entanto, na transposição de ideias de um livro para um filme, podem perder-se muitas subtilezas e a estrutura também. François Truffaut tem a habilidade de criar algo absolutamente seu e que ainda assim nos faz sentir como se estivéssemos a ler um livro. Não só nesta adaptação, mas noutros filmes que realizou, quer fossem adaptações ou ideias originais.


É impossível não relembrar o seu filme “Jules e Jim” ao ver “As Duas Inglesas e o Continente”. No primeiro tínhamos dois amigos que acabavam num triângulo amoroso com a pessoa única que Catherine era. Aqui são duas irmãs inglesas, Anne e Muriel que acabam por conhecer o jovem Claude, a quem carinhosamente chamam de Continente. A trama passa-se durante o início do século XX. Se não fossem as roupas ou as maneiras e gestos a revelar o período, as referências aos trabalhos do escultor Rodin poderiam ser a forma da audiência compreender. François Truffaut assume o papel de narrador do seu próprio filme, como fez noutros. A sua voz é perfeita para o papel, apesar de não ser particularmente única ou memorável. Claude é filho único e vive com a sua mãe, que é viúva, ambos membros da burguesia francesa. Anne é filha de uma velha amiga da mãe de Claude, e após uma visita à França, ela convida-o a passar o Verão com ela, sua mãe e sua irmã, Muriel. As duas raparigas são bastante distintas apesar dos laços de sangue. Uma é vivaz e seus cabelos castanhos e frios são o contrário da sua personalidade. Outra é introvertida, em si mesma se perde do resto do mundo, e o seu cabelo ruivo como fogo não corresponde à pessoa silenciosa que é Muriel. Na primeira noite que passa na casa desta família, a ausência de Muriel à mesa de jantar tem um efeito peculiar em Claude. Não conhecendo esta pessoa, a sua inexistência torna-a num mar de possibilidades. E quando finalmente a conhece, é de uma forma bastante curiosa. Muriel tem problemas de visão, e aparece em cena completamente vendada, complicação devida à sua doença que obriga à necessidade de “descansar” a visão. Ocasionalmente os seus olhos verdes e misteriosos eram desvendados e cruzavam-se com os do Claude. Aquele tom claro da sua íris guarda em si todas as promessas do mundo.


Começa a nascer esta inquebrável amizade entre as duas inglesas e o seu compincha, o Continente. Tornam-se inseparáveis, fazem as suas brincadeiras juntos, fazem piqueniques só os três e passeiam pelos terrenos rochosos junto às praias galesas. Quando no meio das duas, Claude afirma que não quer estar naquela posição e prefere olhar diretamente para as duas. Diz isto de uma forma jocosa, mas o seu sorriso brincalhão torna-se sério e examina as duas raparigas, ambas belas de formas diferente, ambas cheias de vida, mas de uma maneira extremamente dissemelhante, e ambas com carinho por Claude. Quando obrigado a estar no meio das duas, a situação alterava-se e os nervos aumentavam. Entre a espada e a parede, é assim que se sente quando encurralado por duas mulheres impossíveis de não nos apaixonarmos por. Ele ama as duas diz a mãe de Claude face às cartas que ele lhe escreve.


Existem duas cenas muito engraçadas, que ocorrem no mesmo local, mas em tempos diferentes. Um mês separa estas duas sequências. Claude aparece em ambas as cenas, mas na primeira ele está com Anne, na segunda com Muriel. Neste cais, ele conversara com ambas, e ambas lhe seguram o braço, enquanto caminham para fora da visão da câmara. O paralelismo das cenas é uma evidente reflexão da proximidade entre cada uma delas e Claude. Mas, por intervenção quase divina, Claude começa a aproximar-se mais de Muriel. Digo divina pois fica subentendido que terá sido a mãe das duas raparigas que o direcionou ao confrontá-lo com o seu amor por Muriel. Talvez fosse o empurrão que ele necessitasse em direção ao amor monogâmico, mas a verdade é que ele começa mesmo a desejar Muriel, e sente-se inseparável dela. O seu jeito sensível e frases cuidadas são a perdição de Claude. Porém, Muriel diz com toda a certeza que não sente o mesmo por ele, e o coração do rapaz cai. Mas ele não desiste e procura convencê-la a casar-se com ele. Muriel deixa de lutar contra os seus sentimentos e com Claude deseja estar. E o destino maldito destrói as intenções dos jovens amantes. As mães não aceitam esta união devido à saúde fraca dos pretendentes e fazem um pedido pouco usual nos dias de hoje, mas bastante comum na literatura romântica do século XX, pedem-lhes que durante um ano não entrem em contacto um com o outro, nem sequer por carta, para se focarem na saúde de cada um. Se no final desse ano, ainda estiveram apaixonados, então o casamento será permitido.


Assim termina uma primeira parte do filme. Até então, era romântico, as cores eram claras e puras à semelhança do que é dito de Muriel. Os temas eram reconhecíveis e as histórias previsíveis. Até que entramos na segunda parte do filme, e tudo se torna mais negro, mais pecaminoso e mais controverso.


Durante o período em que estão afastados, Claude vai-se lentamente esquecendo Muriel. Envolve-se nas artes e noutros negócios, e também com inúmeras outras mulheres, como o homem aparentemente boémio que é. Muriel vai enlouquecendo, a distância que tem de manter do seu amado deixa-a colérica. “Estou feliz quando estou zangada!” exclama furiosa, dizendo-nos que no meio desta tristeza toda, a raiva é aquilo que mais vida lhe traz. Eventualmente, Claude termina o noivado e isso destrói-a. “Hoje não pensei em Claude” diz Muriel após tanto tempo a sofrer com o que se passou.


O curioso é que Claude volta a encontrar-se com Anne, mais tarde e com ela começa uma paixão fogosa, envolta de liberdade, algo que ele não teve com a sua mãe que controlava a sua vida. Ela revela que convidou Claude a passar aquele Verão em casa delas para tentar fazer um arranjinho entre ele e Muriel, a sua irmã que muito era acometida por doenças, e por isso tão resguardada de possíveis pretendentes. Ela queria avançar e dizer algo a Claude, mas havia uma sombra que a ofuscava, era Muriel. Mas agora, com a irmã “fora do caminho”, era livre de estar com esse homem que talvez não fosse certo para ela. Mas nem sempre o homem certo é aquele que se quer. A sua relação era uma de características incompreensíveis para a maioria e para mim também. Uma de fantasia em que cada um poderia ter os amantes que quisesse. Sem nunca estarem presos a outras pessoas, poderiam verdadeiramente amar, juntos em alma, e dando a sua carne a outros, sem nunca sentir que estão numa prisão corpórea.


Mas a saga das irmãs não termina aqui. Anos mais tarde, Muriel, que tanto sofrera com a sua visão, decide escrever uma última carta a Claude. Um último ato de amor ou mais provavelmente, o desespero de uma alma magoada que desfere um último ataque do seu sabre, que segura em sua mão que vai perdendo a força. Nessa carta, destrói a imagem de pureza que foi criando de si mesma. O seu ar de virgindade deixa de existir, e os seus “pecados” do corpo impressionam Claude, que aceita encontrar-se com ela. A mulher alegre de sorriso tímidos que conhecemos no início do filme, foi substituída por uma figura taciturna, que usa óculos escuros que protegem os seus frágeis olhos de qualquer raio luminoso que poderia ser letal. Rapidamente, a sua face impassível deixa-se derreter pelas memórias do passado e do amor e busca em Claude todas as promessas do mundo. Mas a notícia dos problemas de saúde de Muriel assusta Claude, que não consegue lidar com tal ideia, seu egoísmo venceu esta batalha que tinha como adversário o amor de Muriel.



Avançando drasticamente na narrativa do filme, Anne que se separara de Claude, que obtivera sucesso como escritor, faleceu devido a doença que não nos é revelada. Num encontro não tão fortuito, Claude procura Muriel e na ausência do elemento do trio que os deixou, terminam esta história. Sete anos depois, a história de Claude e Muriel termina com o ato de amor. Um ato até então desconhecido a Muriel, sendo Claude o seu primeiro amante. O ato fora frio, desejado por ambos, mas não de uma forma suave e apaixonada. Era violento, e os sete anos de tristeza estavam visíveis na forma como tinha sido realizado. E Muriel decide que assim acaba aquilo que começou num Verão no País Gales. Tivera uma filha de Claude, e nunca lha apresentou.


O filme terá sido uma inspiração para “A Idade da Inocência” de Martin Scorsese, pois tão bem espelhados estão os epílogos de ambos os filmes. Temos o nosso protagonista masculino, mais velho agora, preso em reminiscências do seu passado. No caso de Claude, um passado que agora deseja reaver. Um passado egocêntrico que ele desejaria agora poder alterar. E poderia fazer isso, se por um segundo que chegasse, encontrasse a sua filha que nunca pôde conhecer e de certa forma mudar toda uma história que prometia a felicidade eterna, e acabou perdida na tristeza que é amar.


Manuel Fernandes

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