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Blade Runner: Perigo Iminente – Literatura vs. Cinema



A adaptação da literatura ao cinema é já uma atividade tremendamente comum. Um livro tem sucesso e a melhor forma de capitalizar ainda mais com esse sucesso é trazer-lhe uma nova face. Nada melhor que arranjar umas estrelas atraentes, um enredo explosivo e reclinar na nossa cadeira, relaxados, enquanto vemos os milhões a fluir. No entanto, aquando da sua estreia, “Blade Runner: Perigo Iminente” não teve o sucesso pretendido, as reações entre os críticos foram divergentes também. Algumas razões prendem-se com o facto de a primeira versão apresentada ao público não ter sido aquela que Ridley Scott pretendia (consistentemente vista como inferior relativamente a versões mais recentes do filme), e também com a expectativa de que seria um filme de aventura e ação que se desvaneceu ao revelar-se não numa narrativa mas sim numa poesia (algo que não cai muito bem para a maioria). Surpreendentemente, acabou por se tornar num clássico da História do cinema, mas o mais interessante desta obra será certamente o facto de em quase nada ser semelhante ao livro que a precedeu, “Do Androids Dream of Electric Sheep?” de Philip K. Dick. Ambos se passam num ambiente futurista, ambos giram em torno de Rick Deckard, um caçador de androides (chamados Blade Runners) e ambos tocam em ínfimos pontos da história… e aí acabam as semelhanças pois não poderiam ser mais discordantes. Antes de começar a dissertar, convém afirmar que me irei referir ao corte final de 2007, a versão do filme que Ridley Scott teve controlo total na montagem deste e portanto a versão mais fidedigna ao autor.


Em 1982, meses antes de estrear “Blade Runner: Perigo Iminente”, Philip K. Dick faleceu sem ter visto o filme que nasceu da sua escrita. Porém, ele teve a oportunidade de ver algumas sequências do filme e exclamou que o ambiente noir que combinou o mundo industrial futurista com feições megalomaníacas do passado eram exatamente aquilo que ele sonhava. Curiosamente, este facto torna-se ainda mais impressionante com a informação de que Ridley Scott nunca leu o livro de Philip K. Dick.


Falemos do livro. Recentemente, terminei a leitura de “Do Androids Dream of Electric Sheep?” e posso afirmar com certeza que é complexo, confuso, talvez mais psicologicamente violento que o seu contraponto cinemático e por isso mesmo, é brilhante e inteligentíssimo na forma como cria um mundo totalmente antagónico das visões típicas do futuro, e aborda temas que sempre foram relevantes no passado, que também o são no presente e para sempre farão parte da problemática humana. Em termos de enredo, após uma guerra nuclear, o planeta Terra encontra-se como um resquício do que foi. A maioria das espécies animais foram extintas, os resíduos nucleares tiveram impacto nos seres humanos e essa mesma poluição levou à imigração para colónias em Marte. Seguimos duas narrativas como uma polifonia. A primeira é de Rick Deckard, um mercenário, que foi encarregue de caçar seis andróides da mais alta gama, Nexus-6, que fugiram para a Terra pois estes (tal como os outros andróides que Deckard caçou) não apresentam a capacidade empática dos humanos e por isso podem ser perigosos (assim entendi). Secundariamente, seguimos John Isidore, um homem marginalizado pela sociedade por apresentar um QI inferior à normalidade que acaba por ajudar os andróides a esconderem-se das autoridades (o contraponto cinemático será J. F. Sebastian). O porquê do título? Como os animais vivos se tornaram altamente raros, ser dono de um (e aqui, mesmo animais que tipicamente não vemos como domésticos passam-no a ser) é um símbolo de estatuto. Apenas uma pessoa altamente empática conseguirá ter sucesso com um, e a empatia é altamente valorizada nesta sociedade futurista. Como muitos não têm os recursos para comprar um animal vivo, conformam-se com animais elétricos e rezam que os seus vizinhos não reparem que as suas ovelhas estão com problemas elétricos. A própria religião dominante, chamada de Mercerismo (rudimentarmente traduzindo para português), se baseia na empatia. Os seguidores ligam-se a uma “caixa de empatia” que conecta todos os crentes a uma realidade virtual onde assistem a Wilbur Mercer, o seu adorado mártir, que eternamente trepa uma colina sendo derrubado por pedras que caem do topo que dificultam a sua jornada. Poderia (e gostaria de) discutir os elementos que compõem e articulam as ideias e a visão que Philip K. Dick tem sobre a nossa sociedade, porém, ainda tenho que analisar o filme e uma extensão de cinco mil palavras, não seria o mais aprazível para o leitor que está a olhar para este artigo num site de internet. Portanto, ideias essenciais: Philip K. Dick criou um mundo com uma sociedade fracionada. Quer acreditemos que a inteligência artificial acabará por desenvolver uma consciência intrinsecamente semelhante à do ser humano ou não, nesta sociedade, os andróides têm noção do “eu” e das implicações que a sua existência tem. E no entanto, são considerados inferiores aos seres humanos. O seu papel como “ajudante” nas tarefas domésticas ou outras quaisquer tem o simples nome de escravo na nossa leiga nomenclatura. Portanto, uma sociedade tão evoluída, sucumbe ao mais básico dos crimes, inferiorizar um outro ser que, apesar de artificial, tem uma existência equiparável à sua. O argumento-contra poderá prender-se com “Mas os andróides não são empáticos. E muito facilmente se tornam violentos sem preocupação com as consequências que isso terá no outro.”, algo totalmente verdadeiro. Os andróides (para os quais arranjaram uma alcunha pejorativa, “andy”) divertem-se a torturar animais, facilmente matam humanos e apresentam comportamentos vis. Efetivamente, isso acontece mas aí entra outro ponto interessante. Os humanos deste mundo preocupam-se constantemente com a capacidade de serem empáticos, mas eles mesmos têm dificuldade nisso e arranjaram maneiras de tentar provar a sua própria empatia e muitas vezes, divertem-se com atos semelhantes aos dos andróides, como “reformar” andróides, algo que Rick presenciou quando se juntou a outro Blade Runner na sua jornada. Sucintamente, e apesar de falhar em muitos outros temas que o livro tão bem argumentou e estar a cometer um crime por não referir mais que uma ínfima fatia daquilo que Philip K. Dick criou, o pensamento que mais se evidencia é o de hipocrisia social e a facilidade com que arranjamos formas de colmatar as nossas falhas para justificar o mal que fazemos para nos diferenciar dos outros “vilões”, quando nós mesmos também o poderemos ser (ainda assim esta será uma má definição desta reflexão, mas nada como a leitura individual para perceber melhor o que pretendo transmitir e também para desenvolver as próprias ideias).




E o filme? Vejo-o como uma reflexão com recurso essencial ao visual sobre a nossa própria existência. A melancolia despertada quando nos questionamos “Quem somos?” e “Qual a nossa razão de existir?”. Rick Deckard vai seguindo um percurso de destruição e morte, apoiando-se constantemente nas ideias que transportou em toda a sua carreira para não criar nele mesmo sentimentos que o pudessem desviar da sua profissão: “não são seres vivos”; “em nada se assemelham a mim e as minhas ações são essenciais para o bem da Humanidade”. Ao longo do projeto de eliminação desta “praga”, Rick conhece Rachel Rosen, também ela um andróide. Diferente dos outros no entanto, pois ela não tinha a noção de que era um (uma ideia muito interessante que o filme bem explorou – para mais reais se sentirem, recorria-se a um processo de implantação de memórias nos andróides para obterem um sentimento de continuidade de vida). E começa a ressoar esta ideia de questionar o que realmente somos. Um sonho constante que envolve um unicórnio, pode ser uma pista para Rick quando se confronta com esta questão. O mundo parece dividido (tal como o de Philip K. Dick) entre os humanos e os outros, e estar no lado errado pode ser uma verdade assustadora. Toda a nossa vida se resumiu à crença de que os outros são diferentes e sem importância quando comparando com o nós e de repente, há a disrupção de uma verdade absoluta, algo que pode ter uma coima avassaladora. Podemos perder o rumo até. Em Rick Deckard temos o medo da compreensão do mundo que mostra que a ignorância é a mais forte das felicidades. E nos próprios andróides assistimos à tentativa de escape daquilo que são, procurando sentir que o que foi predeterminado por qualquer força superior não pode ser uma limitação para o que se pode efetivamente atingir. Procuram Tyrell, o criador, como meio para atingir algo que não o que o mundo lhes reserva, mas sem sucesso. Não há outra opção senão aceitar a morte: “All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.” – não existe alguma tradução que faça jus às palavras que Rutger Hauer improvisou e que tanto exprimem a infelicidade da existência. Em Rick, temos a dúvida que talvez seja confirmada com o origami de um unicórnio que não tão deprimente é quanto a morte, mas que tão trágica não deixa de ser. Uma dúvida que a audiência transporta para ela mesma.


Apesar dos enredos de ambas as obras não serem consistentes um com o outro, e de tocarem nos mesmos pontos apesar de num de forma direcionada à sociedade, e noutro ao eu, podemos concluir que quando uma forma de arte tem as suas raízes intelectuais na outra, não é necessário que sejam exatamente iguais. Os visuais hipnotizantes que Ridley Scott criou tornam-se no complemento perfeito para as palavras desoladas e por vezes acutilantes de Philip K. Dick. E desta forma se criaram duas obras-primas da arte moderna.




Manuel Fernandes

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