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Brendan e O Mundo Secreto de Kells & A Canção do Mar: O Início da Trilogia do Folclore Irlandês


Quem prestar atenção aos Óscares deverá ter notado que, além dos títulos habituais da Disney, Pixar, Dreamworks e Ghibli, juntou-se um novo estúdio aos nomeados constantes: o irlandês Cartoon Saloon. Apenas com três longa-metragens no seu nome, todas elas foram nomeadas, assim como uma curta-metragem, Late Afternoon, embora nenhuma ainda tenha chegado à categoria de vencedor (provavelmente porque na categoria de Melhor Animação não é requerido aos jurados ver todos os nomeados). Ainda mais raro é serem todos animação 2D, uma técnica que está a cair em desuso no Ocidente em favor da animação por computador.


Das longa-metragens gostaria de chamar à atenção as duas primeiras, Brendan e O Mundo Secreto de Kells e A Canção do Mar, ambas dirigidas por Tom Moore e parte daquela a que ele chama a “trilogia do folclore irlandês”, da qual o terceiro filme, Wolfwalkers, tem estreia marcada este ano. Note-se que esta é uma trilogia mais temática do que narrativa; o que liga os três filmes não são personagens ou eventos, mas a recorrência à mitologia e folclore da Irlanda (embora haja um personagem de O Mundo Secreto de Kells que faz uma aparição em A Canção do Mar, para quem estiver atento). Além desta, há mais duas correntes temática mais subtis entre os dois filmes: o poder da arte para inspirar e unificar as pessoas em tempos sombrios, e a importância na comunicação e ajuda entre a família em alturas de sofrimento.

Brendan e O Mundo Secreto de Kells passa-se na Idade Média, mais precisamente na época das invasões viquingues, e conta uma versão fantasiosa da história do Livro de Kells. O personagem titular é um jovem monge e sobrinho de Cellach, o controlador e restritivo abade de Kells que vive obcecado com a construção de uma muralha que afaste os viquingues da sua abadia. Numa das vagas de refugiados, o rapaz trava amizade com o iluminador Aidan de Iona, que o toma como aprendiz para completar o Livro de Iona (mais tarde de Kells), para desagrado da mente prática do seu tio. Numa das explorações na floresta por bagas para usar como tinta, ele também conhece Aisling, uma fada da floresta e a última do seu povo após a invasão do deus pagão Crom Cruach.

A técnica do filme é espantosa e é claramente o aspeto-chave do filme. O estilo é nitidamente inspirado na arte medieval, com perspetivas forçadas, padrões e detalhes escondidos e uma abundância de cores vivas. Qualquer cena que reproduza uma página do Livro de Kells, com todas as suas minúcias quase microscópicas, é um espanto de detalhe e pesquisa. Apesar da elevada estilização simples e geométrica dos personagens (ou talvez por causa dela), todos os seus movimentos são ricos em energia e personalidade, especialmente no expansivo Aidan e na selvagem Aisling. Também há imenso simbolismo e alusões à cultura irlandesa, desde os mais óbvios (ditados e canções em irlandês, figuras míticas ou históricas como Aidan, São Columba e Crom Cruach) até os mais subtis (o grupo de monges impossivelmente diversificados para a época, simbolizando os diferentes estilos que inspiraram o Livro; o próprio nome da Aisling e do gato Pangur Bán, que remontam a poemas irlandeses). E para quem aprecia poesia, vale a pena ficar durante os créditos.

A história foi desenvolvida por Tom Moore desde os seus tempos de faculdade e era originalmente um argumento para banda desenhada, e apesar da qualidade no produto final nota-se este desfasamento com outras longas-metragens. Os personagens têm uma ótima complexidade e bela química entre eles – à exceção dos monstruosos viquingues e do incompreensível Crom Cruach, que rapidamente ensombrecem a narrativa cada vez que aparecem – mas os eventos assemelham-se menos a uma linha narrativa e mais a uma série de vinhetas com um fio condutor. Há uma grande ênfase no papel inspirador da arte, com o Livro de Kells sendo repetidamente descrito a “transformar a escuridão em luz”, embora isso de pouco valha para quem esteja cego pela escuridão do futuro ou o brilho fugaz do ouro. O filme é bem mais curto do que muitas outras longas-metragens, acabando após 1h15, o que dá a sensação da história ter terminado a meio, mas apenas porque nos prendemos tanto a estas personagens e ás suas vidas.

A Canção do Mar, por outro lado, passa-se nos tempos modernos e centra-se numa família desfeita pelo desaparecimento da mãe Bronagh (não, eu não vou usar as traduções; que raios tem Julia a ver com Bronagh?!): Conor, o pai faroleiro deprimido; Saoirse, a filha muda nascida na noite do desaparecimento; e Ben, o irmão mais velho que culpa a irmã. Após o aniversário desastroso da rapariga, a intrometida, mas bem-intencionada avó leva-os para a cidade na tentativa de dar uma melhor vida aos miúdos, para irritação de Ben. Lá descobrem que Saoirse é uma selkie como a mãe e que o seu canto deverá guiar as fadas à sua terra natal. Os irmãos terão que regressar ao farol e recuperar o casaco de Saoirse, fonte do seu poder, enquanto evitam as corujas da bruxa Macha que deseja sugar os sentimentos de todas as fadas, petrificando-as.

Este é um filme claramente menos experimental do que o primeiro, com um design mais comum embora ainda estilizado e mais momentos de perspetiva convencional. No entanto, ainda há ocasiões de perspetiva forçada e alusões ao estilo medieval d’ O Mundo Secreto de Kells, particularmente nos cenários e em grandes planos. Os personagens não são tão exageradamente energéticos, com a exceção de um ou outro personagem cómico, mas mantém todos a fluidez e personalidade do seu antecessor; especialmente a Saoirse, que sem dizer uma palavra consegue exprimir exatamente o que ela pensa num único olhar. E, mais uma vez, os créditos contêm um easter egg artístico, neste caso a arte conceptual e evolução da animação do filme.

A história, no entanto, é o verdadeiro grande salto entre os dois filmes. A narrativa é muito mais coesa e completa, e os personagens continuam profundos e humanos nos seus sentimentos, desta vez sem exceções. Embora a música seja recorrente durante o filme, funciona mais como um dispositivo narrativo que os personagens devem executar para prosseguir, com o verdadeiro relevo sendo as relações entre eles. Apesar do Estúdio Ghibli ter sido citado como uma referência de Tom Moore, aqui nota-se mais claramente a sua marca, com os conflitos sendo gerados não por vilões maléficos e monstruosos, mas por pessoas complexas a tentarem lidar com as suas emoções e fazer o que acham estar certos (e convenhamos, a Macha lembra muito as bruxas Yubaba e Zeniba d’ A Viagem de Chihiro). E, tal como em O Feiticeiro de Oz, os personagens fantásticos servem uma clara metáfora com os humanos, tanto em design como em personalidade e conflitos (com uma das comparações sendo-nos dita diretamente, se soubermos irlandês). A alusão à cultura irlandesa, embora com o ocasional poema ou frase na língua, centra-se agora mais no seu folclore mítico, explorando os diferentes tipos de fadas – ou, como eles gostam de ser chamados, “os Outros, os Bons Vizinhos, os Daoine Sídhe” – embora com larga liberdade artística para encaixarem na narrativa; especialmente as selkies, que têm um papel muito mais importante e independente (e, francamente, bem mais afetuoso) do que nos mitos originais.

Em conclusão, os dois filmes são uma exploração interessante e profunda de uma cultura ainda pouco conhecida se comparada com as fontes mitológicas mais populares. Ambos têm um tema recorrente da importância da arte e na comunicação entre pessoas, embora se note maior ênfase na arte em Brendan e O Mundo Secreto de Kells e mais na família em A Canção do Mar. Espero ansioso a conclusão da trilogia, mas de qualquer forma, irei sempre estimar este início.

Gabriel Peixoto

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