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Carrie: O Horror de Crescer



Da primeira vez que vi “Carrie” fiquei bastante surpreendido pela forma como o filme foi-se desenvolvendo. Tinha na minha mente que seria um filme de terror e por isso, todos os clichês que conhecia saltaram-me à cabeça e a minha expectativa manteve-se ao nível desse pensamento. Apenas tinha noção de que haveria uma sequência que envolveria sangue de porco num baile de finalistas devido às imensas referências a esta cena, na cultura pop. Por isso fiquei bastante surpreendido quando os créditos iniciais me trouxeram a um mundo mais semelhante ao de “Grease”, mas com maior maturidade (ou melhor imaturidade com muitas hormonas aos saltos, como seria de esperar do mundo adolescente), pois somos transportados para um balneário feminino, onde a protagonista, Carrie se lava. E é neste preciso momento que temos uma mudança tonal brutal que funciona como presságio para o grande e memorável evento futuro nesta história. Carrie, que tomava banho após uma aula de educação física, tem o seu primeiro período e fica aterrorizada com aquilo. Eu não posso falar de como é esta experiência pois nunca a tive nem tive a coragem estúpida de perguntar como é tê-la, mas suponho que possa ter o seu quê de assustador, porém Carrie parece que está a morrer, grita de uma forma descontrolada e completamente anormal e o comportamento das suas colegas não é o de compaixão mas sim o de gozo e depreciação, típico dos adolescentes parvos. Mas há que questionar o porquê de ela ser assim.


Brian de Palma fez parte da geração de cineastas intitulada de Movie Brats, da qual faziam parte também George Lucas, Martin Scorsese, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola (nomes pequeninos nos dias de hoje, obviamente), que foi bastante influenciada pelas gerações anteriores. Particularmente, Brian de Palma foi muito influenciado por Alfred Hitchcock, e, se leram a minha análise a “O Desconhecido do Norte-Expresso”, saberão que se há algo que Hitchcock ensinou foi a desenvolver as personagens calma e pacientemente para que possamos tirar o máximo delas nos momentos de maior tensão, mesmo antes da resolução que ele tão gostava. Brian de Palma, como um bom aluno, levou esta abordagem excelentemente para criar uma cena excelente que ninguém se esquecerá se vir o filme. Mas desenvolveu apenas o suficiente, para que haja também alguma ambiguidade e para que as pessoas possam fazer as suas interpretações ou ficar enraivecidas pela falta de compreensão e suposta lógica que sentirão. As cenas iniciais são muito assertivas e dizem logo que se trata de um filme sobre a puberdade e experiência femininas durante a adolescência. Os poderes de Carrie começaram a aparecer quando ela entrou na puberdade (será preciso analogia mais direta que esta?) e se ela já se sentia distante do resto do mundo, então agora é que estas dúvidas sobre a sua telecinesia iriam colocar um ponto de interrogação ainda maior na sua mente. E ela não é tão diferente das suas colegas por simplesmente ser uma adolescente tímida, mas sim devido ao seu ambiente familiar que mais se assemelha a um culto, vivendo preso em sua casa com a sua mãe que se trata de uma fanática religiosa e que interpreta a maioria dos prazeres como pecado. Antes de seguir para a famosa sequência, digo apenas que a má conduta das colegas de Carrie levam a dois tipos de atitudes distintas. Uma rapariga, Chris, após ser castigada por causa da sua crueldade, sente que a culpada é Carrie e engendra um plano, juntamente com o seu namorado, o influenciável Billy, para se vingar. Outra, Sue, cheia de remorsos, sente que a Carrie, que anda sempre tão isolada, merece tirar algo de bom da sua experiência no secundário e pede ao seu namorado, o quebra-corações Tommy Ross, para levar Carrie ao baile. Além disso, haverá uma manipulação dos resultados da competição de Rainha do Baile a fim de que Carrie ganhe e suba ao palco para que o plano de Chris possa ser posto em prática.


Então, Carrie é uma rapariga muito infeliz, quer em casa, quer na escola, que está a mudar de uma forma que ela própria não consegue compreender nem controlar e muita gente intromete-se no seu próprio destino, tendo as suas próprias motivações pessoais em conta e não os pensamentos e sentimentos de Carrie em conta. Se mudássemos os eventos e mantivéssemos as ideias por trás, poderíamos fazer facilmente um filme sobre adolescentes a vaguear pela idade terrível, à procura de crescer. No entanto, Brian de Palma não é homem para fazer algo assim, aproveitando todo o trabalho até agora para recompensar os pacientes com uma sequência brilhante que nos faz tremer não só pelo quão macabra é, mas especialmente pela violência física (que psicológica já há muita) que faz o filme adquirir. A mudança tonal que referi anteriormente torna-se a repetir, primeiro, Carrie está no baile e tudo é mágico, a música e as imagens assim mostram a perspetiva da protagonista. Ela nunca foi tão feliz como naquele momento e toda a tristeza é recompensada com a sua coroação como Rainha do Baile, o símbolo máximo de aceitação por parte dos seus colegas, aquilo que os adolescentes mais valorizam. As coisas ocorrem em câmara lenta e ela é o foco do holofote, a atuação de Sissy Spacek é tão genuína que quando vemos os seus olhos cheios de lágrimas, o nosso coração quase que derrete. E de repente, começa tudo a desenrolar-se da pior maneira possível. O pior da adolescência será a humilhação e é para aí que caminhamos. A música indica-nos que as coisas mudaram e pequenas pistas visuais mostram de forma cómica esta alteração, o humor permite fazer esta transição de forma gradual. E quando o sangue de porco cai em cima de Carrie, a música é interrompida e apenas ouvimos os objetos. Nada de temas musicais a acompanhar nem as vozes das outras personagens, e isto salienta o quão humilhada Carrie se sentiu. De seguida, ouvimos os risos e as vozes daqueles que se comprometeram a protegê-la a acompanhar a sua visão caleidoscópica. Este misto de humilhação e sentimento de traição foi o seu ponto de quebra. Começa uma sequência genial de destruição sobrenatural que se serve de uma das melhores utilizações de split-screen na história do cinema, em que uma das telas vai vagueando, tendo Carrie (que já não é a jovem inocente mas sim um anjo do apocalipse) no seu interior, enquanto que a outra nos mostra tudo aquilo que ela está a fazer, um banho de sangue que nos deixa divididos, visto que até agora toda a nossa empatia estava na jovem e agora sentimos a perda dos outros que apesar de culpados, não mereciam o que se está a passar. Brian de Palma disse à revista “Cinefantastique”, em 1976: “Eu senti que a destruição tinha que ser mostrada em split-screen, porque quantas vezes é que se pode cortar entre a Carrie e as coisas a mexer-se de um lado para o outro? Pode-se fazer demais. É um engenho cinemático morto. Por isso, eu pensei fazer em split-screen. Eu passei seis semanas a montar tudo, eu próprio.”. E essa dedicação compensou pois criou uma cena inesquecível.


No final de tudo, Carrie retorna a casa onde a sua mãe revela que ela foi o produto de uma violação por parte do seu pai enquanto bêbado, algo que ela admite ter gostado, e que nos leva a crer que, tendo Carrie sido concebido através uma relação violenta e desprovida de amor, consumada apenas pelo desejo carnal, que ter-se-á tornado numa entidade sobrenatural para castigar os pecados da sua mãe e da humanidade. E é assim que esta mulher fanática tenta matar a sua própria filha, que vê como um demónio, mas Carrie acaba por matar a sua mãe e mal isso acontece, vemos o retorno da jovem, não como uma mulher vazia que ainda há pouco provocou tanta destruição, mas sim como uma criança assustada que acaba de perder a sua mãe. Por pior que ela fosse, era sua mãe na mesma. O processo seguinte é o de auto-destruição, em que a casa reclusa funciona não só como a destruição física da personagem, mas também metafórica pois o crescimento de Carrie é visto como algo que ela deve esconder da sociedade. Em todo o filme, vimos os vários adolescentes, principalmente as raparigas, com bastante confusão relativamente àquilo que acham que deveriam sentir (de acordo com o que a sociedade define como certo) no que toca à sexualidade, crescimento, relacionamento com os outros. Todas estas mensagens levam ao colapso emocional que é a passagem de rapariga a mulher adulta. Tudo isto mascarado como um filme de terror por um dos grandes mestres. Engenhoso, não é?


Manuel Fernandes

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