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Citizen Kane: Como Os Gigantes Caem


Com a tenra idade de 25 anos, Orson Welles viria a fazer história ao produzir, realizar, coescrever e atuar no filme “Citizen Kane”. A sua estreia foi sem dúvida alguma o melhor trabalho da sua carreira e trata-se de um filme que iria ganhar a reputação de “o melhor filme da História”, vencendo imensas votações relativas ao assunto, e estando no topo de milhões de listas de críticos e cineastas. Uma reputação que provavelmente terá arruinado a experiência de muita gente que teria fortes expectativas daquilo que iriam ver. Eu próprio não me senti impressionado da primeira vez que vi “Citizen Kane”, acabando por ficar maravilhado quando o decidi rever. Trata-se de um filme bastante diferente daqueles que estamos habituados a ver no circuito comercial, e não consegui entender o que o tornava tão bom, nessa primeira vez. É um filme melancólico que lida com assuntos que exigem alguma maturidade para serem completamente compreendidos. A rápida subida e longa caída de um homem destinado ao sucesso. Sucesso esse que acabaria por ser a sua própria desgraça, manchada por um desejo impossível de retornar aos bons momentos que foram a sua infância. A narrativa é encarada de uma forma muito curiosa, não numa linha direta, mas antes aos ziguezagues, e avanços e consequentes retrocessos, algo pouco comum na década e que mesmo nos dias de hoje, fará torcer alguns narizes que preferem coisas simples.


Conhecemos Charles Foster Kane momentos antes da sua morte. Ele suspira a palavra “Rosebud”, famosa para os cinéfilos e que ganhou bastante significado na pop culture. E com a morte do magnata, todos os jornalistas decidem mais uma vez capitalizar com o nome deste homem cuja vida privada fora mexida e remexida por todos os outros, e descobrir o que era este “Rosebud”. Torna-se uma corrida, quem conseguir descobrir o significado, irá obter o artigo mais procurado em todo o mundo. Nós assumimos o papel de jornalista também (Orson Welles fez algo bastante inteligente ao esconder, nas sombras, a cara daqueles que fariam o papel de jornalistas, permitindo a quem assistisse ao filme, sentir que estaria por trás desta investigação), e vamos procurando todos aqueles que cruzaram caminho com o homem mais poderoso do mundo, a fim de obter alguma informação que fosse sobre aquilo que cruzou a mente de Kane nos momentos anteriores à sua morte. É uma viagem pelos ressentimentos da vida, por situações pequenas e inesperadamente belas, pela megalomania que acompanha a riqueza e pela construção de uma imagem pública que estivesse de acordo com aquilo que o público deseja, quer seja quem somos quer seja totalmente díspar da verdade.


Existe uma sequência fantástica em que no espaço de dois minutos, assistimos à paixão ardente que uma pessoa pode ter por outra e como o tempo pode pegar em algo tão belo e destruí-lo. Charles Foster Kane senta-se numa ponta da mesa, a sua mulher na outra e ele diz que simplesmente a ama. Vários cortes vão mostrando o mesmo local aos longos dos anos, e o discurso vai-se alterando. O que no início era uma cena amorosa, anos mais tardes, desenvolve-se com diálogos impessoais e cujos temas de conversa eram sempre a indústria jornaleira. Kane respondia violentamente que as pessoas pensarão aquilo que ele quiser que elas pensem. Na última cena desta sequência, nem uma troca de palavras existiu, apenas dois olhares, repletos de ressentimento que evidenciavam o dissabor que tinham um pelo outro.


Talvez o que mais incomoda em “Citizen Kane” é a representação dolorosamente real da obsessão. A forma como nos descontrolamos ao procurar fazer o bem, acabando por fazer o mal no processo. Não por sermos más pessoas, mas porque as condições assim nos obrigaram. Quem procura tocar o sol, poderá acabar sem asas qual Ícaro que não ouviu aquilo que seu pai lhe avisou.


“Citizen Kane” é impressionante na forma como pega numa vida e expande-a a uma escala gigantesca. Charles Kane era um pequeno miúdo que perdeu aquilo que lhe era mais querido, que nunca teve o amor que desejava e ao invés teve tudo aquilo que as outras pessoas acreditam ser a resposta para todos os problemas. Anos mais tarde, era Charles Foster Kane, não uma pessoa, mas sim uma instituição, um símbolo de riqueza e poder. Uma imagem de proporções enormes que todos garantiam conhecer, mas nunca ninguém conseguiu compreender. Neste homem morava apenas uma criança, e nesta criança, a amargura sempre viveu, nunca foi ultrapassada.


É um filme pesado a nível sentimental, cheio de momentos de tensão, com fugazes suspiros de alegria. Brilhantemente realizado, repleto de técnicas cinemáticas que ainda hoje são difíceis de replicar, estando apenas reservada para os grandes do cinema. Atuações que merecem ser vistas e revistas e que devem ser utilizadas como aprendizagem para os atores modernos (porque apesar de ser um filme dos anos 40, era muito à frente do seu tempo, e até na atuação, já mostrava uma forma de atuar diferente daquela comummente associada à época). E sem dúvida, um dos melhores filmes alguma vez feitos. Para quem quiser fazer uma sessão dupla com “Mank”, talvez seja mais divertido inverter a ordem e ver primeiro o trabalho de David Fincher e a seguir o de Orson Welles. Será uma boa sessão para estes tempos!

Manuel Fernandes

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