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Consegues Guardar um Segredo? – À conversa com Fernando Cardoso



Em 2019, foi publicado “Consegues Guardar um Segredo?”, obra do escritor vimaranense, Fernando Cardoso, através da editora, Edições Provocativa. Na sua sinopse, pode-se ler que a história envolve, tal como o subtítulo indica, um presidente da junta, que estará a enveredar por caminhos errados, e também, as pessoas à sua volta. Sem retirar protagonismo a qualquer outra personagem, Fernando Cardoso teceu uma complexa teia em que todas as peças tornam-se importantes nesta invulgar trama.


Virtualmente, falei com Fernando Cardoso sobre si, sobre a obra e também algumas curiosidades. A entrevista pode ser lida na Underscope:


1 – “Consegues Guardar um Segredo?” é o primeiro livro. Quanto tempo demorou a escrever e o que o motivou a perseguir a escrita?


Em rigor, este é o segundo livro que publico. O primeiro foi um livro muito pequenino, de apenas 26 páginas, editado pela Chiado Editora em 2014. Tratou-se apenas do desenvolvimento, de forma metafórica, de uma ideia que me surgiu com a crise de 2008. No entanto, considero o “Consegues Guardar um Segredo?” como a minha primeira obra, por se tratar de um romance mais maduro, mais desenvolvido, com outro alcance.


O tempo decorrido entre o surgimento da ideia inicial/escrita dos primeiros capítulos e o lançamento do livro foi bastante, porque estive vários anos sem trabalhar nele. Devem ter passado uns vinte anos, sendo que o tempo efetivamente utilizado na sua escrita foi bastante menor. Diria que, mesmo a escrita não sendo a minha atividade principal, o tempo que lhe dediquei terá sido de aproximadamente um ano.


Desde muito cedo, desde a escola primária, que eu gostava de escrever e que os meus professores apreciavam a forma como eu escrevia. E foi assim até à conclusão da minha licenciatura. Também sempre li bastante, o que considero muito importante para desenvolver a forma e a vontade de escrever. E eu sempre escrevi, mesmo fora do contexto escolar. Sempre me deu prazer escrever, tanto em poesia como em prosa. No entanto, durante muitos anos, não tinha a mínima intenção de partilhar o que escrevia. Ficava apenas nos meus cadernos e, nos últimos anos, no computador. Também por isso é que passava muitos anos sem continuar algum romance que tivesse começado. Não havia prazos, nem compromissos. Daí ter começado vários e lhes ter perdido o rasto. Em 2013 ou 2014 decidi expor-me um pouco e ver qual seria a reação das pessoas. Por isso me comprometi comigo próprio a escrever uma obra pequenina, para começar e terminar em pouco tempo. Para poder partilhar o que escrevia, tinha que ter uma obra concluída. Foi assim que surgiu o Econáufrago, a obra pequenina que citei atrás. Como tive reações muito positivas, resolvi pegar na obra que tinha começado há muitos anos e concluí-la com intenção de publicar.


Por outro lado, a escrita é um meio para eu registar a forma como eu interpreto o mundo e os comportamentos das pessoas. Sem julgamentos, sem juízos de valor. Apenas a minha visão pessoal. Durante muitos anos, como disse, apenas para meu arquivo, e agora também para suscitar a reflexão dos leitores.


2 – Como é que foi para si o processo de escrita? Por exemplo, envolveu um trabalho de pesquisa árduo?


Quando eu decido escrever uma história, normalmente a ideia surge por causa de algum facto, de algum acontecimento da vida real. Pego nessa ideia e vou-a desenvolvendo, juntando outras, também inspiradas na realidade. Neste caso concreto, passou muito pela observação do que se passava à minha volta. Quer fossem factos ocorridos muito próximo de mim, quer fossem ideias geradas por factos relatados nos noticiários. Lembro-me, a título de exemplo, que a ideia de um sequestro em casa surgiu de notícias que na altura revelaram uma coisa desse género, penso que nos Estados Unidos: um homem que manteve presa em casa uma menina, que cresceu naquela situação, sem que ninguém se apercebesse. O homem estava perfeitamente integrado na sociedade. Isto chocou-me. Então decidi incluir no meu romance uma situação desse género. Para ajudar o leitor a refletir, como já referi. Por outro lado, foi também uma viagem às minhas memórias de infância. Foi um grande trabalho de pesquisa nesse sentido: nas memórias. Houve também situações em que factos semelhantes aos que eu pretendia relatar aconteceram com pessoas que eu conhecia, pelo que as questionei no sentido de perceber exatamente como ocorreram para eu poder pormenorizar melhor. Não pretendia fazer um relato histórico, nunca foi essa a intenção, mas apenas agarrar ideias que eu pudesse utilizar para dar mais verosimilidade. A minha escrita incide sobre factos plausíveis, que possam ser reconhecidos pelos leitores como algo que pode acontecer, ou que aconteceu com alguém que conhecem, ou a eles próprios. Já aconteceu de pessoas se identificarem com aquilo que eu escrevo, transpondo para factos das suas vidas que eu nem imaginava. Ou que possam simplesmente refletir sobre isso.


3 – No seguimento da pergunta anterior, sei que já está a trabalhar num segundo livro e está a fazê-lo de uma forma invulgar. Pode explicar pelas suas palavras no que consiste esse processo e como surgiu a ideia?


O livro que estou a escrever neste momento está a ser desenvolvido num projeto a que eu chamei “Mil Mãos”, porque pretende ter um grande número de co-autores. Funciona assim: eu desafio as pessoas a inscreverem-se num grupo no Whatsapp criado para este projeto. O grupo está sempre aberto, em qualquer altura as pessoas podem inscrever-se. Eu escrevi um primeiro capítulo de um romance sobre o qual eu não tinha formado mais ideia nenhuma, ao contrário do que é habitual. Partilhei nesse grupo esse primeiro capítulo e desafiei as pessoas inscritas a sugerirem o que deveria acontecer no capítulo seguinte. Pegando nas ideias e sugestões recebidas eu desenvolvi o capítulo seguinte e partilhei-o no grupo, continuando o desafio de sugerirem o que deveria acontecer no capítulo seguinte. À segunda-feira eu partilho o capítulo criado a partir das ideias e sugestões recebidas na semana anterior. Ou seja, durante a semana recebo as sugestões, no final da semana desenvolvo o capítulo seguinte, e na segunda-feira publico no grupo o novo capítulo. Está a ser um desafio muito interessante, e eu gostava muito que mais pessoas se inscrevessem. Quanto mais sugestões fizerem, maior é o desafio para mim.


Esta ideia surgiu durante uma formação em que eu participei chamada Extreme Seller, com Ricardo Ventura. Estávamos a pensar sobre a criação de um produto digital no âmbito da literatura, por ser a minha área de interesse, e entre várias, o Ricardo teve a ideia desta forma de escrever um livro. Quando me explicou eu gostei de imediato da ideia e decidi colocá-la em prática. O Ricardo Ventura é um especialista em várias áreas do comportamento humano e tem várias formações muito interessantes em várias áreas que envolvem a relação interpessoal.


4 – E já há outros projetos debaixo da manga à espera de serem trabalhados para além do já referida? Trabalha em vários ao mesmo tempo ou prefere dedicar o tempo a apenas um de cada vez?


Neste momento tenho um outro projeto já bastante adiantado. Um projeto que já estava em desenvolvimento antes de começar o “Mil Mãos”. Eu não tenho como modelo de trabalho dedicar-me em exclusivo a um projeto. Como a minha escrita é inspirada na vida real, por vezes o quotidiano apresenta-me ideias que, se encaixarem no projeto em andamento englobo-as, mas se não encaixarem e eu as considerar mesmo interessantes posso dar início a outro trabalho. Por exemplo, há meses surgiu-me uma ideia para um livro infantil e eu escrevi-o de imediato. Apesar de ter outros projetos em andamento, agarrei nessa ideia e concluí esse pequeno projeto. Portanto, não tenho problema nenhum em trabalhar em mais do que um projeto em simultâneo. Consigo separar bem as ideias.


5 – Voltando à recente obra, muitas vezes os autores transpõem parte de si ou das suas vivências nas personagens. O mesmo acontece nesta obra? Alguma personagem que mais se aproxime da sua pessoa?


Apesar de não haver uma personagem que me represente, sim há uma personagem que vive uma ou outra situação, tem uma ou outra conversa, que foram situações vividas por mim. No entanto são situações pontuais. A maior parte da caracterização da personagem não tem nada a ver comigo. Até porque a maior parte da história é ficcional ou inspirada em factos noticiados na imprensa. Apenas uma ideia ou outra foi inspirada em situações de proximidade comigo.


6 – Devo dizer que se trata de um livro bastante interessante e que puxa muito pela curiosidade do leitor, ficando sempre na expectativa do que irá acontecer seguidamente. Deve-se não só à escrita mas também a uma ideia bastante interessante que empregou e que é facilmente notável mas dificilmente expectável. Refiro-me à quase divisão do livro em duas partes, ambas muito distintas e em que diferentes personagens ganham ou perdem algum relevo. O que o levou a adotar esta estratégia e como surgiu tal ideia?


A ideia de escrever desta forma repartida surgiu das analepses e prolepses que são, por vezes, utilizadas pelos autores, em que intercalam a história presente com relatos de espaços temporais diferentes (passado ou futuro). Neste caso a repartição não é entre espaços temporais diferentes mas sim entre histórias diferentes que, mais cedo ou mais tarde, acabam por se tocar. Decidi adotar esta forma por pretender vincar de forma clara duas formas distintas de abordar a vida e a interação com as outras pessoas. Expor a distinção entre altruísmo e egoísmo, entre trabalhar para o interesse geral e trabalhar apenas com o seu próprio interesse em mente. No fundo, para ajudar o leitor a perceber que tanto uma forma de encarar a vida como a outra dependem de decisões individuais. Cada um de nós decide qual a estratégia que pretende adotar para a sua vida.



7 – Há também uma clara distinção no que é narração e no que é diálogo. Muito pela formalidade de um e casualidade do outro. Essa forma de falar remete-nos para os locais onde decorre a ação. Houve algum objetivo de promoção regional ou simplesmente isso foi uma forma de poder apresentar uma história mais fiel ao que tinha em mente? (Por se tratar de uma região que suponho que lhe seja bem conhecida).


Todas as proposições da questão estão corretas. Ou seja, ao colocar as personagens a falar daquela forma pretendi registar, promover, formas de falar que vão caindo em desuso, para que não se percam por completo. Não que devamos utilizá-las, não é isso. Apenas ficarem registadas para que, quem não as vivenciou, saiba que elas foram uma realidade. Foi também por uma questão de aderência à realidade. Se as pessoas daquele meio falam daquela forma, é mais realista registar as suas falas tal como elas as fariam. Como eu cresci num meio rural, sim, cresci a ouvir esta forma de falar e o seu registo tem, para mim, um grande significado. Assim como algumas tradições que surgem no enredo. A intenção é preservar coisas que deixaram de se fazer ou que hoje se fazem de maneira bem diferente, fruto da evolução que ocorreu nos últimos anos, a todos os níveis.


8 – Já que questionei sobre objetivos, qual foi o seu objetivo com este livro? Tanto a nível pessoal como aquilo que pretendia para todos os que o leram.


Pessoalmente foi o transpor de uma barreira psicológica. Eu nunca tinha colocado a hipótese de partilhar com as pessoas o que fui escrevendo ao longo da vida. Isso era um ponto assente, que eu tinha como encerrado. Uma barreira intransponível. Nos últimos anos, por influência de vários livros que li e de formações que fiz, percebi que essa barreira não era real. Era apenas uma criação da minha mente, em que eu acreditava. E, com um grande esforço e trabalho pessoal, fui derrubando essa barreira. E esse trabalho ainda não está concluído. É um trabalho contínuo. Aquele primeiro livrinho foi o primeiro teste. Por isso a partilha deste livro foi uma grande vitória pessoal… contra mim próprio!


Para quem lê, o que me agrada é ajudar as pessoas a pensarem sobre factos que, por vezes, aceitamos como normais. Dizemos coisas como “só assim é que se faz alguma coisa”. “Toda a gente faz assim”. Mas serão mesmo aceitáveis? Consideramos certas coisas normais mesmo quando nos prejudicam? Ou só aceitamos como normais quando nos beneficiam?

E, pelos feedbacks que já obtive, penso que atingi esse objetivo. Estou bastante satisfeito neste aspeto.


Por outro lado, gosto de surpreender os leitores. Não gosto que o leitor consiga deduzir, ao fim de alguns capítulos, como vai terminar. Também neste aspeto já tive uns comentários de pessoas que estavam a ler o livro e julgavam intuir o final, só que não era o que eles estavam a pensar.


9 – Uma das personagens que mais gostei foi o presidente titular (referindo-me ao subtítulo “O Crime do Presidente”), não por gerar empatia por ele, mas precisamente por conseguir tornar uma personagem tão desagradável em humana. E o mesmo estendo às restantes personagens em que as caracteriza excelentemente, muito por empregar não um diálogo lírico, mas sim um realista. Porque decidiu dar a uma personagem tão ignóbil tanto protagonismo?


Exatamente para frisar a duplicidade de algumas pessoas. Apresentam-se muito amáveis perante os outros, muito prestáveis, muito sociáveis e, no entanto, têm propósitos e uma vida pessoal que, provavelmente, a sociedade condenaria, se deles tivesse conhecimento. Ou então apresentam obra no exercício do poder mas com base em tráfico de influências, em chantagens, tendo como objetivo final os seus próprios interesses. Sejam eles de promoção pessoal, financeiros, de perpetuação no poder, o que seja. O bem de todos é apenas um estribo, uma necessidade para a sua ascensão pessoal. Sem julgamentos, como já referi, apenas para nos ajudar a refletir se esses comportamentos são aceitáveis.


10 – Já se passaram quase dois anos desde o lançamento do livro. Qual foi o impacto que teve nas suas perspetivas literárias?


Os comentários que já obtive fazem-me crer que valerá a pena continuar neste caminho. Aliás, um dos comentários foi mesmo esse: que estava no bom caminho. É muito gratificante quando uma pessoa me liga a dizer que passou a noite em claro porque começou a ler o meu livro e não conseguiu parar. Só parou pela madrugada, quando acabou de o ler. Ou outra pessoa que me contactou pelas redes sociais a fazer perguntas sobre o livro, porque o tinha lido num fim-de-semana com muito agrado e pretendia saber mais sobre a história. E partilhou-o nas suas redes sociais, aconselhando a sua leitura.


A publicação deste livro ajudou-me a perceber que não há nada que me impeça de continuar a divulgar os meus trabalhos. A boa receção que teve por parte dos leitores faz-me acreditar que devo disponibilizar mais do meu tempo para a escrita, e esforçar-me por concluir os projetos para os poder divulgar e fazer chegar às pessoas. Essencialmente o grande impacto foi ao nível da minha crença, da minha confiança na qualidade da minha escrita.


11 – Por fim, onde é que os mais curiosos poderão encontrar o livro?


Uma vez que, na minha opinião, as editoras não têm condições muito favoráveis para oferecer aos novos escritores, aos escritores desconhecidos do público, decidi tomar em mãos a tarefa da produção do livro. Portanto, quem o pretender adquirir deverá fazê-lo através das redes sociais da Edições Provocativa. A forma mais rápida e eficaz, porque é aquela que mais utilizo, é através do instagram (@literaturaprovocadora), que criei ainda antes de criar a editora.


Na Bios desse instagram também encontram o link para aderirem ao grupo do whatsapp Edições Provocativa, para quem quiser participar no projeto Mil Mãos. Todos são bem-vindos, e gostava muito de os encontrar lá. Fica o desafio.


Manuel Fernandes

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