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Crash: Obras-primas que Tenho Medo de Rever



Aviso: Não confundamos com “Crash” de Paul Haggis, vencedor do Óscar de Melhor Filme. Este artigo é referente a “Crash” de David Cronenberg.


Pensar em David Cronenberg é pensar no género de body horror, que nasceu das ideias de medo de infeção, doenças venéreas, deformidades, e que culminou em imagens grotescas de transformações do corpo humano em formas disformes e que suscitam nojo. “A Mosca” será provavelmente um dos seus mais emblemáticos filmes e que melhor descreverá este género. Terá sido por isso, uma surpresa quando David Cronenberg trouxe “Crash” ao Festival de Cannes de 1996. O thriller psicológico erótico foi algo totalmente diferente da restante filmografia do realizador e provocou reações fervorosas e divergentes por parte da audiência cinéfila.


O que terá “Crash” que será tão controverso? Em termos simples, o filme, adaptado do livro de J. G. Ballard, segue James Ballard, um produtor de cinema e a sua mulher Catherine. Estão num “casamento aberto”, procurando cada um encontros sexuais com outras pessoas que não um e o outro (não impossibilitando que também o façam juntos). Certo dia, James distrai-se enquanto conduz e acaba envolvendo-se num acidente de automóvel. Este é o evento que despoleta todos os acontecimentos perturbadores que se irão seguir, pois é através dele que James entra em contacto com um nicho de pessoas com sinforofilia, uma parafilia onde ocorre atração sexual ao observar tragédias, tais como, acidentes de automóveis.


Numa entrevista sobre o filme, David Cronenberg disse que ao ver o filme só pensava no quão perturbadas e enlouquecidas estas pessoas eram, isto vem do próprio realizador que não é apologético dos comportamentos destas personagens. É uma parte assustadora do cinema, onde o mal e a violência é explorada, não por motivos de entretenimento (como atualmente, a violência parece ser vista no meio cinemático mais comercial), mas como uma forma de compreender melhor a psique humana. É um filme pornográfico sem o ser. Nunca vemos qualquer genitália durante o filme, mas o filme ataca os nossos sentidos de uma forma tão subtil e ao mesmo tempo direta que quase sentimos que estivemos a assistir a um espetáculo de nudez física, quando na verdade, vimos a nudez da natureza humana.


No título refiro que não quero rever este filme, no entanto, apelido-o de “obra-prima”, não no sentido de ser a obra-magna de Cronenberg (tenho em grande estima o já referido “A Mosca”, e ainda não assisti aos seus “Videodrome”, “Irmãos Inseparáveis”, e “O Festim Nu”), mas como uma grande experiência que só o cinema pode proporcionar e que poucos são os filmes que o conseguem fazer. Não é agradável, tive a oportunidade de o ver no Theatro Circo e por vezes era uma experiência absolutamente desagradável, devido ao conteúdo do filme. No entanto, o estado em que me encontrava, era talvez o de transe, como se eu já não estivesse no meu lugar, mas dentro da mente das personagens. Tal como James Ballard, o que antes via como completamente anormal, a certa altura já não era questionável. Pois o comportamento que estas personagens apresentam era o mesmo comportamento que eu e qualquer outra pessoa por vezes já sentiu. Obviamente, não me refiro à estimulação por violência, duvido que muitos assim o sintam e prezo o filme por provocar em nós uma repulsa à violência e não uma indiferença como a maior parte dos filmes provoca em nós. Refiro-me a outras coisas que nos excitam, mas que vemos nelas como algo errado, e ainda assim não as deixamos de procurar. Roger Ebert referiu-se ao filme dizendo “É sobre a mente humana, sobre a forma como somos escravizados pelas coisas específicas que nos excitam e como perdoamos as nossas próprias transgressões”.


“Crash” é por todas estas razões um dos mais difíceis filmes que alguma vez vi. Obrigou-me a ir aonde eu não queria, e a entrar num estado que nunca pensei entrar durante um filme. Foi provavelmente, uma experiência cinemática única que jamais irei repetir, ou pelo menos fico nessa incerteza ou se realmente gostaria de repetir. Andar pela rua após aquele estado foi algo como nunca senti em que as coisas que me rodeavam perdiam sentido e via os objetos e possessões de uma forma totalmente diferente. É um sentimento difícil de explicar, mas que convido os cinéfilos a arriscar em cinema como nunca antes viu.

Manuel Fernandes

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