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De Olhos Bem Fechados: Um Natal Diferente



Pensemos na época natalícia. O que procuramos? Luzes, bolinhas, alusões ao Pai Natal, neve, e a lista vai continuando. Mas não é isto que Stanley Kubrick pensa. Comecemos com a valsa número 2 de Dmitri Shostakovich, que é acompanhada por um ecrã preto onde vão aparecendo os créditos iniciais. Subitamente, vemos uma mulher, com um vestido preto de elegância tal que quase nos esquecemos de olhar para o seu redor, onde as cortinas vermelhas são o que mais próximo temos dos temas natalícios. E eis que o seu vestido desce pelo seu corpo, ficando completamente nua.


- Feliz Natal! – diz Stanley Kubrick.


Bastaram vinte e cinco segundos, e Kubrick já nos deu uma impressão totalmente desconhecida daquilo a que estamos habituados a ver num filme onde as decorações de Natal são algo tão proeminente nos arredores. Não é por estarmos em dezembro que a Humanidade deixa de ter comportamentos sórdidos ou que Kubrick abandona por completo a sua visão fria do mundo. Adaptando o filme do livro “História de um Sonho” por Arthur Schnitzler, lançado em 1926, abandonou a Viena do início do século XX em detrimento de Nova Iorque dos 90 (apesar do filme ter sido filmado na sua maioria no Reino Unido). E o filme gira em torno da relação do Dr. Bill Hartford e a sua mulher, Alice. Na verdade, mais direcionado a Bill, pois é na psique dele que vamos entrar. Logo nos primeiros minutos, numa festa de Natal à qual foram convidados por Victor Ziegler, um paciente de Bill, que, diga-se de passagem, é detentor de uma grande fortuna que lhe permite organizar festas enormes para acolher calorosamente os seus amigos, conseguimos perceber algo curioso neste casal. Vão a uma festa juntos, mas afastam-se logo nos primeiros minutos. Bill vai cumprimentar um antigo colega de curso (apesar de este não ter concluído o curso de medicina), de nome Nick Nightingale, que agora é pianista profissional, e Alice fica sozinha, à sua mercê. Ela começa a ser rondada por um charmoso húngaro (não a bolacha, mas sim a nacionalidade), deixando-se levar pela simpatia e promessa de uma dança lenta, e repara que o seu marido está a falar com duas modelos. Ambos estão a tentar ser seduzidos por outrem, mas apenas Alice nota em Bill, o contrário não acontece. Quase nos diz que ela presta atenção a si mesma, e a Bill, enquanto que ele vive na bela ignorância de que só ele é que tem necessidades, em termos sexuais.


Numa sequência curiosíssima, vemos as rotinas diárias de cada um dos elementos do casal. Ele no consultório, ela em casa. Ele contacta com dezenas de pacientes, todos os dias, entre os quais mulheres lindíssimas (prováveis membros da alta sociedade nova-iorquina) que ele, devido à profissão, tem a possibilidade examinar enquanto desnudas. Ela passa o dia com Helena, a filha, fazendo as mundanas tarefas da lida da casa, e brincando com a pequena menina que sonha com o dia de Natal que chegará proximamente. Estas cenas são importantíssimas pois permitem-nos perceber o estado exasperado no qual Alice vive. Ela não adora passar os dias em casa e, por muito que goste da filha, ela também gostaria de fazer algo tão entusiasmante quanto Bill. Para além disso, há que relembrar as primeiras frases que cada um diz. Ele pergunta onde está a sua carteira, e ela pergunta como está, no sentido de questionar se está atraente. As duas coisas que a sociedade favorece, dinheiro e aparência, são estes os elementos que mais estatuto dão às pessoas e ambos são detentores destas características.


E após esta exposição toda, começa a trama a desenvolver-se. Kubrick muniu-nos com as ferramentas para entrarmos na mente dos dois elementos do casal, e agora vai contar-nos aquilo que lhe interessa. Certa noite, eles decidem fumar marijuana e é neste estado lentificado da mente que Alice faz uma revelação bastante curiosa. Bill apresenta uma perspetiva da sexualidade feminina que é muito consensual para a mente masculina, aquela de uma noção completamente biológica quase. Os machos procuram uma fêmea atraente, com as melhores características físicas para permitir a continuação de uma espécie com as características que melhor permitem a sua continuidade, daí que eles sejam tão impulsivos e inconscientemente procurem fazer parte de atos sexuais quando encontram mulheres lindíssimas. Já as fêmeas, procuram um macho que as sustente, que lhes seja fiel e que lhes deem uma ninhada… Mas isto não faz muito sentido, pois não? Quase implica que os homens são semelhantes a cães e as mulheres não tenham cérebro. As pessoas são bastante diferentes dos outros animais, e essa visão altamente simplificada pode ser verdade para uma manada de bisontes, mas certamente que não para pessoas. Alice revela que durante umas férias que passaram no Cabo Cod, que fantasiou sexualmente com um oficial da marinha que lá conheceu, e que desejou até fugir com ele, deixando Bill e Helena para trás. A revelação foi de tal forma desconcertante para Bill (que acreditava veemente que Alice nunca teria pensamentos desses, e seria de uma fidelidade inabalável, tanto no corpo como na mente) que para ele começará a noite mais longa da sua vida.


Não terminaram a conversa pois Bill é chamado à casa de um paciente seu que acaba de morrer. O pensamento de Alice com um estranho entranha-se na mente de Bill. Ele odeia ver as coisas daquele modo, algo que tinha como certo torna-se simplesmente numa mentira e ele deseja magoá-la da mesma forma que aquela ideia o magoou. Seguem-se dois encontros com duas mulheres que desejam Bill sexualmente. Uma devido à dor de ter perdido um ente querido, outra para a qual o ato sexual é o modo de vida. Bill não consegue avançar em nenhum dos casos. Bloqueado com o pensamento de Alice nas mãos de outro homem, ele sente-se um falhanço e por isso impotente. Ele deseja cometer uma infidelidade que seria de certa forma uma vitória sexual sobre a sua mulher que, de momento, parece estar a ganhar neste joguinho sórdido dos sexos, mas é incapaz de tal.


Continua a série de eventos fortuitos. Encontra o bar onde Nick Nightingale trabalha e o seu amigo confidencia a existência de um baile de máscaras, repleto de lindíssimas mulheres (aquilo que Bill acredita ser o que mais necessita momentaneamente). Esta festa, que se assemelha aos tão famosos bailes venezianos, está cheia de rituais incompreensíveis (que relembram um culto) e encontra-se envolta de um mistério tal que a minha primeira experiência ao ver estas cenas deixou-me com um arrepio na espinha e a questionar quais seriam as minhas atitudes se me visse na mesma situação. É uma das cenas mais marcantes da filmografia de Stanley Kubrick.


À semelhança do título do livro que “De Olhos Bem Fechados” adapta, todas estas ocorrências relembram um sonho. Os tons escuros de azul da casa de Bill, dão um elemento de irrealidade a tudo o que aconteceu. E nem a sua entrada com uma bela e luminosa árvore de Natal consegue mudar estas ideias. Ele esteve fora de casa, a sua mulher confirma isso, mas existem dúvidas quanto a tudo àquilo que aconteceu. Foi uma noite extremamente bizarra. “É só um sonho” diz Bill a Alice quando ela acorda nervosa, e quase que podemos dizer o mesmo a Bill… apesar de tudo ter acontecido.


E agora ponham-se na posição de Bill. Se tivessem tido uma noite tão bizarra quanto esta, não questionariam tudo que aconteceu? Não acreditariam que forças maiores estariam por trás de tudo o que se passou? Até porque no dia seguinte, Bill tenta procurar respostas a perguntas que subitamente desvaneceram. Ele bem tenta, mas só encontra becos sem saída. Nada faz sentido. Nick desapareceu, o Sr. Milich (que lhe arrendou o smoking e a máscara) parecia já não ter problemas com os homens japoneses que estavam com a sua filha, a prostituta com quem quase passou uma noite de infidelidade testou positivo para VIH, e uma mulher, que ele acredita ser quem o salvou naquela noite quase fatal, morreu com uma overdose. E nisto tudo, apesar de desejar que as coisas façam sentido, o que lhe continua a atazanar a mente são as descrições da sua mulher, tanto a revelação que despoletou aquela noite, tal como o pesadelo que ela teve (a pior maneira para Bill terminar aquela fatídica aventura). E continua o desejo de reaver o poder sexual sobre ela, mas nada parece correr a favor dele. Para além disso, parece que anda a ser seguido por alguém, provavelmente, uma pessoa que faça parte daquele culto que ele teve o infortúnio de contactar.


Queremos respostas imediatamente, alguma coisa tem que começar a fazer sentido e parece que finalmente isso vai acontecer quando Bill é convidado a ir à casa de Victor Ziegler que aparentemente sabe que Bill esteve no baile. Ziegler também confirma que mandou alguém seguir Bill, e começa a explicar tudo o que se passou. Os convidados da festa eram elementos da alta sociedade. Pessoas importantes, celebridades, qualquer um que fosse facilmente reconhecível e cuja posição poderia ficar comprometida caso se descobrisse o se passava naquele género de festas. Os desaparecimentos não foram nada de especial, coisas simples como o Nick ter voltado para casa, a mulher que morreu realmente era a que estava na festa, mas foi realmente uma overdose que a matou e não se tratou de um culto assassinato por mãos de um culto. A verdade é muito menos aliciante que as teorias da conspiração que Bill imaginou na sua mente. Nós gostamos de acreditar mais em fantasias do que assentar os pés na realidade, torna a vida em algo mais excitante. E o assunto ficaria por aí, até que Bill chega a casa e a sua máscara, que havia desaparecido, está na sua cama. E de repente… então, é algo mais simples? É um sonho? Há mesmo uma conspiração? A Alice estava dentro do assunto?


Bill confessa tudo o que se passou a Alice. E ouvindo tudo, tem que haver alguma resolução. Na loja de brinquedos (tinham prometido a Helena que iriam lá), continuam a conversa. Rodeados de brinquedos de Natal, Bill com um ar desesperado e Alice quase inexpressiva responde a Bill aquela coisa que ninguém imagina que seria o que ela diria, naquele local. Diz que a melhor coisa que eles têm a fazer agora é foder. A última palavra dita num filme por Stanley Kubrick é esta. Talvez porque de certa forma podemos ver isto como uma grande metáfora para impotência sexual masculina. Ou como uma luta dos sexos, na qual Alice parece ter ganho. Começam os créditos e Kubrick termina a sua última obra-prima.

Manuel Fernandes

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