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Disponível Para Amar: A Valsa da Solidão



Recentemente, os filmes de Wong Kar-Wai sofreram um processo de remasterização em 4K, levado a cabo pelas The Criterion Collection e L’immagine Rtrovata. Em Portugal, a Leopardo Filmes adquiriu cinco filmes que sofreram esse processo, entre os quais “Disponível Para Amar”, o mais reconhecido e aclamado trabalho do realizador. Foi com muita alegria que pude assistir recentemente a uma sessão do filme em grande qualidade, no pequeno auditório do Theatro Circo. Foi a primeira vez que vi este trabalho de Wong Kar-Wai (algo que esperava há já algum tempo), e o segundo filme dele, tendo visto previamente “As Cinzas do Tempo Redux”. No entanto, não sabia o que esperar pois, enquanto que o único filme que tinha visto dele era do género de ação e aventura, o realizador de Hong Kong é conhecido pelos seus temas românticos, personagens com sentimentos desconexos do resto da sociedade, cores altamente saturadas e imagens extremamente estilizadas. E devo dizer que fiquei desapontado. Mas isso é algo bom, e já explico porquê.


O título do filme talvez seja melhor quando feita uma tradução literal do chinês, que resultará em algo como “Anos Floridos”, algo que alude para a natureza subtil e bela do filme. Essas são as qualidades que melhor o definem. Visualmente, será dos filmes mais belos que alguma vez vi na minha vida, e não digo isto como uma hipérbole ou para captar a sua atenção, caro leitor. A cor vermelho quase que ganha um novo significado com este filme, mas já estou a falar demais, há que primeiro explicar alguns pontos narrativos.


O filme começa em 1962, Hong Kong, na altura uma colónia britânica. Numa comunidade de xangaienses exilados, conhecemos o Sr. Chow, jornalista e homem casado que arrenda um quarto juntamente com a sua mulher, Tony Leung, colaborador frequente de Won Kar-Wai, dá-lhe vida. No mesmo dia, a Sr.ª Chan, secretária numa empresa de exportações e interpretada pela espantosa Maggie Cheung, também arrenda uma casa no mesmo edifício, juntamente com o seu marido. Através de uma montagem rapidíssima, que nos confunde temporalmente, e nos faz perder qualquer noção dos dias, vamos percebendo a rotina dos dois protagonistas. Os dois vizinhos partilham algo em comum, a solidão, apesar de casados, nunca vemos os seus cônjuges e eles passam os seus dias sós e sem ninguém para jantar. Recorrentemente, vemo-los no restaurante de massas, passando um pelo outro sem realmente estabelecer alguma conexão. É essa a vida a que eles se estão a acostumar. Nestas situações, Wong Kar-Wai usa a câmara lenta, acompanhada por um tema musical recorrente (“Tema de Yumeji” por Shigeru Umebayashi) que juntamente com as cores berrantes, criam uma sensação de sensualidade e paixão ardente. Mas, aquilo que obtemos são cenas melancólicas. O Sr. Chow e a Sr.ª Chan não olham um para o outro da forma que nós, a audiência, gostaríamos que olhassem. Se os olhares se cruzarem, não será mais do que um ou dois segundos, como quem cumprimenta um conhecido, alguém que não conhece bem, mas dita a boa educação que um olhar simpático é o correto a fazer.


Eventualmente, a solidão torna-se em tristeza, pois começam as suspeitas de infidelidade que acabam por se confirmar. Infelizmente, a mulher de um e o marido de outra iniciaram um caso, um acontecimento que não muda o tom do filme, acabando até por o nutrir. Numa cena brilhante, em que a montagem e a câmara são a alma, eles discutem as suas suspeitas, porém evitando revelar a razão pela qual queriam falar um com o outro. Ela pergunta-lhe “Aonde é que queres chegar?”, a câmara que antes focava numa personagem, mantendo-a no centro, perde a sua função. Na altura de responder, ela corta para trás do Sr. Chow, como se tivesse perdido a sua compostura, e corre rapidamente para o apanhar, pois é preciso continuar a interação. São estes pormenores que tornam “Disponível Para Amar” num encanto visual, mas continuando. A solidão que eles sentem continua lá, mas agora começa um processo de dor. Estamos habituados a ver explosões de raiva face a estas situações, mas trata-se de uma sociedade diferente, com ideais. Em vez de “Porque é que me fizeste isto?”, surge “Porque é que isto aconteceu?”. Eles os dois procuram perceber o que levou os seus parceiros a fazer algo assim. Fazem atuações, imitando os gestos e frases que eles tomariam, o Sr. Chow no papel do marido da Sr.ª Chan, e ela faz o papel de mulher dele. Jantam, pedindo as refeições que o parceiro de cada um iriam pedir. É um processo doloroso de ver, especialmente por se assemelhar imenso ao início de um relacionamento. Um encontro num café, olhares fugazes, a partilha de um táxi, passeios à chuva, tudo nisto grita um filme romântico. Então porque não o é? Se olharmos para além dos tons de vermelho, roupas elegantes e tudo aquilo que o ambiente sugere, reparamos que neles existe precisamente o contrário daquilo. Torna-se uma valsa a quatro, da qual apenas vemos dois dos dançarinos. Uma valsa desesperada à procura dos seus parceiros.


Assim, cria-se esta relação platónica entre ambos, na qual se vão ajudando um ao outro. A definição que eles têm de ajuda pelo menos, porque nesta pequena associação, aquilo que eles fazem acaba por aumentar a melancolia que sentem. Também desenvolvem um pequeno hobby, ela começa a ajudá-lo a escrever uma série de artes marciais para publicar no jornal. No entanto, a sociedade na qual eles se inserem, trata-se de uma em que se deve manter as aparências. O simples rumor de que eles se tenham envolvido romanticamente pode destruir as suas vidas pessoais, mexendo e remexendo mexericos onde quer que passassem. Isso dá origem a um dos episódios mais cómicos do filme, no qual ficam presos uma noite inteira no quarto do Sr. Chow, pois os seus vizinhos decidiram jogar Mahjong numa noite de folia. Eles não estão a cometer nada de adúltero. Nunca se tocam sequer, apenas jantavam, continuam o seu depressivo jogo e o projeto que iniciaram, mas qualquer menção à Sr.ª Chan a sair do quarto dele durante a noite seria suficiente.


Avançando drasticamente, (julgo eu pois o filme funciona como um álbum com recortes de fotografias e nunca temos a noção da passagem dos dias, tal como referi), a quantidade de tempo que passam juntos faz florescer aquilo que tanto desejamos, mas que sabemos que é completamente errado. É incerto quando isto começou, se já no início e eles evitavam agir perante estes impulsos para não descerem ao nível das duas pessoas “invisíveis” das quais tanto ouvimos falar, ou se após tanto tempo, a tristeza que os dominou brutalmente foi-se degradando e permitiu que tais sentimentos fossem crescendo. Das duas maneiras, eles percebem que o melhor é terminar antes de começar. Nunca se beijaram, nunca escreveram cartas apaixonadas nem trocaram carícias, apenas se ajudaram na altura de maior melancolia. E, no entanto, foi uma história de amor que ainda me magoa.


Num último gesto de loucura, ele refere que vai para Singapura e pergunta-lhe se ela viria com ele. Não ouvimos a resposta, apenas o vemos a esperar. Ele está de costas, e a câmara aproxima-se dele sem nunca mostrar a sua face, não sabemos se chora, se se mantém pensativo, fica para a nossa imaginação, com a música de Nat King Cole a tornar ainda mais pesado o ambiente. Ela chega tarde demais, e ele nunca soube que ela correu para se juntar a ele, pronta a deixar tudo.


Um ano depois, ela está em Singapura e decide procurá-lo. Vai ao seu apartamento, mas não o encontra, decide, portanto, ligar para o local de trabalho. Nesta chamada telefónica, não há uma resposta. Ele pergunta quem está do outro lado, mas o medo de um reencontro silencia-a. Voltamos a saltar no tempo e três anos depois, voltamos a Hong Kong, ao local onde eles se conheceram. A Sr.ª Chan visita o seu antigo apartamento, acompanhada pelo seu filho, e mais uma vez, sem um Sr. Chan a acompanhá-la. Voltar àquele local foi pesado, mas acaba por até perguntar o preço da renda, assume-se que ela tenha voltado a viver no apartamento que há quatro anos lhe proporcionou a mais bela história de amor que nunca existiu. Ele também volta ao seu antigo apartamento, e questiona quem vive no outro apartamento. Respondem-lhe que uma mulher e o seu filho, a tragédia continua, pois ele não imagina que a coincidência de a pessoa que ele mais procura estar do outro lado, é a realidade. E com a porta a fechar, temos um dos finais mais tristes do cinema, daqueles dos quais não nos apercebemos prontamente do quão doloroso é. Uma história de oportunidades perdidas da qual resulta o pior dos sentimentos. Mas eis que as coisas se complicam ainda mais.


No Camboja, em 1966, assistimos a filmagens de arquivo, da chegada do General De Gaulle à região. O Sr. Chow está no país, para documentar o evento talvez? Na verdade, está em Angkor Wat, o maior monumento religioso do planeta. E começamos a questionar-nos se o filme aparentemente romântico, terá na verdade um tom sociopolítico ou até religioso. Enquadra-se perfeitamente nos temas do budismo, com a rejeição de prazeres, na procura de atingir a paz interior. Para o Sr. Chow, isto não interessa, ele apenas está lá para poder contra o seu segredo a alguém. Não o diz a ninguém, mas sussurra a um buraco do tempo (algo que relembra a história que contou ao seu amigo Ping). Tantos anos depois e ainda sente que perdeu quem verdadeiramente amava. Fica a pergunta: e se?

Manuel Fernandes

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