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Era uma vez em… Hollywood: uma meta-análise do cinema


No seu 9º e, muito possivelmente, penúltimo filme, Tarantino trouxe um misto de nostalgia do passado e reflexão do cinema aos nossos olhos. E de uma forma inesperada, devo acrescentar, pois quando o vi pela primeira vez, numa sala de cinema, este não era o trabalho que eu esperava. Pensar na sua obra é pensar na constante reafirmação da sua paixão cinéfila, diálogos rápidos sobre o mundano do quotidiano que são surpreendentemente cativantes e nos momentos muito, imensamente, bastante e chocantemente violentos. Dizer que não se encontra estes elementos nesta última obra é errado pois efetivamente eles estão presentes (e a sequência final que o diga). Mas a constante azáfama que Quentin Tarantino habituou à sua audiência parece estar silenciada comparativamente ao habitual. Temos algo mais refletivo, não no eu como ser pensante e emocional, mas na própria arte do cinema. Até se pode afirmar que todo o filme é uma carta de amor ao cinema mundial, tendo Hollywood e o próprio Quentin Tarantino no centro.


Estamos na transição dos anos 60 para 70. Hollywood está em mudança. As grandes produções de estúdios estão a perder o seu público para as pequenas e com total liberdade artística criações de artistas quer independentes quer relacionados com o sistema de estúdio que procuravam criar um cinema mais emocionante e essencialmente diferente daquilo que o passado centrado no poder do estúdio com o objetivo de agradar às massas havia trazido. E é neste contexto que são apresentados os três protagonistas (sem esquecer o elenco secundário de luxo), dos quais dois são personagens fictícias que funcionam como dualidade da estrela de cinema e já a outra se trata de uma adaptação da muito real e trágica atriz Sharon Tate. 


Não fazendo uma análise linear, começo por afirmar que o filme se pode resumir a uma sequência com muito pouca ação mas cheia de emoção nos olhos da nossa estrela. Sharon Tate, após uma passagem na livraria, repara que no cinema local, o filme em exibição é “Um Perigo em cada Curva” que além de Dean Martin tem a própria Sharon Tate a estrelar e decide (após imensa argúcia que a permitiria visualizar o filme gratuitamente) que a experiência cinemática era aquilo que precisava naquele exato momento. Um sorriso enche a sua cara à medida que se vê a si mesma e o quanto a audiência está a gostar do filme. Está assim resumido “Era uma vez em…  Hollywood”. É sobre o quanto se gosta de ir ao cinema ou de cinema em geral! A paixão miudinha que temos. A reflexão introspetiva que nos dá. Os novos mundos que nunca vimos. Tudo parte daquilo que ver um filme nos traz, não apenas como uma forma de “passar o tempo” mas sim como uma arte que pode fazer muitas coisas mas mais simples que todas elas, rasgar um sorriso nas nossas caras.


Pode-se então ver o cinema como algo mágico. Pois como poderia o simples ato de ver estas imagens em movimento ter tanto impacto no eu? Certamente, será dotado de uma capacidade extra-humana. E neste momento também nos lembramos que o cinema nos pode magoar. Pode ser um veículo de trazer e mostrar o Mal do mundo. Então porque resume aquela tão alegre cena um filme que será sobre o cinema em geral? Pois bem, acredito eu que Tarantino quis trazer a falácia de Hollywood ao ecrã como ela é.


Voltando atrás… Rick Dalton é uma estrela de cinema. Em decadência sim, mas não deixa de ser o ator reconhecido e amado por muitos. Até os seguidores de Charles Manson o admiram pela nostalgia que ele traz das suas infâncias em que a televisão foi tão preponderante. Ele interpretou imensas personagens típicas do cinema e televisão americano dos anos 50 e 60. Homens fortes com punhos de ferro e línguas afiadas sempre prontas a terminar o confronto com uma arrebatada final dos seus lábios. Mas mal a câmara se afasta, toda aquela imagem se torna num resquício e memória daquilo que o homem não é. Tem vícios, desfaz-se em lágrimas face à adversidade e em constante dúvida das suas capacidades em incessante necessidade de reafirmação e valorização dos outros para confirmar que ele tem algum significado na indústria (ficando completamente emocionado até por uma pequena rapariga valorizar as suas capacidades). Quem é este homem afinal? Não é de todo aquilo que esperamos ou melhor que temos expectativa que seja. Já Cliff Booth é completamente o oposto. Ele é “só o duplo”. E mesmo isso é dizer muito pois de momento, é mais o motorista de Rick que outra coisa qualquer. Um falhado nos termos de Hollywood. Mas debaixo deste verniz superficial que a empresa lhe colocou, temos um machão que enfrenta o perigo, está em perfeita forma física e consegue a miúda – a descrição típica dos heróis (mais uma vez, dos anos 50 e 60). Numa cena em que Cliff Booth está a conduzir (todas as cenas em que ele aparece somente a conduzir são acompanhadas por fantásticas músicas vindas diretamente desta época para os nossos ouvidos se deliciarem), ele dá boleia a Pussycat que diz que “os atores são falsos”. No entanto, aqui tenho que discordar dela pois tanto os atores como os seus duplos são falsos, especialmente neste filme, pois funcionam como um veículo que não só demonstra as diferenças entre o homem que se vê nas personagens e o homem real como também uma forma de emocionar a audiência com dois extremos do mesmo homem que serão na realidade a bifurcação da sua personagem tendo em conta aquilo que são as expectativas da audiência. De forma menos confusa, Tarantino quis mostrar que nem todos os atores são heróis como aparentemente demonstram e que Hollywood coloca nas suas personagens a expectativa hercúlea que gostamos de ver representada, como fuga da realidade.


Avançado para o eletrizante final, a mesma premissa é transportada para concluir o filme. No verdadeiro sinal do perigo, quem combate e vence a ameaça é, efetivamente, o duplo, mas é o ator quem está lá para dar o golpe final e colher os louros mesmo à frente da audiência. E fruto disto que ocorre? Sharon Tate não é vítima do horrendo e hediondo crime que tanto assolou os Estados Unidos e chocou todo o mundo e Rick é inclusive convidado a entrar na casa de Sharon e Roman Polanski, como um amigo. Isto numa fase em que ele começou a demonstrar mais versatilidade na sua carreira como ator. Parece tudo lindíssimo. Vai tudo correr bem. E aí aparece o título… “Era uma vez em… Hollywood” como relembrança de que por mais que o estúdio se esforce, isto não é uma representação da realidade mas sim uma história que nos aquece o coração e dá esperança. Face às adversidades do mundo, se lutarmos, nos esforçarmos, e nos mantivermos fiéis aos valores que nos enraizaram, seremos recompensados. Mas quem vive no mundo real, sabe que por vezes, por mais que lutemos, as coisas não são tão belas. Não é uma verdade absoluta. Muitas vezes os nossos esforços são recompensados. No entanto, Hollywood gosta de definir tal como regra.


Isto numa primeira análise, pois em muito poderia deambular. Tarantino fez questão de incluir um oceano de temas e pequenas curiosidades para os cinéfilos procurarem. Até de forma subtil, encontramos a lição dos grandes mestres. Os jump-cuts que Godard popularizou em “O Acossado” estão presentes no diálogo entre Rick Dalton e o estreante e futuramente famoso James Stacy. O mesmo trabalho de câmara na conversa entre os samurais e os aldeões em “Os Sete Samurais” de Kurosawa encontra-se nas filmagens da nova série em que nervosamente, Rick troca as falas. Só para dar alguns exemplos. Mas mais interessante que explorar tudo isso, é a forma como Tarantino pensou nele mesmo, desde o casting de certos colaboradores como Kurt Russell que pudemos ver em “À Prova de Morte”, apresentando uma vestimenta que nos faz lembrar desse seu papel. Ou na dualidade entre este e seus outros filmes em que Tarantino se quis reinventar. Em “Pulp Fiction” ou “Django Libertado” quando sentimos a tensão a trepar a nossa pele, esta acaba em ação. Violenta, sangrenta e satisfatória. Quando a música, em Spahn Ranch, em tudo nos diz que virá um confronto, um ataque, qualquer coisa e sentimos que Cliff vai entrar na pancadaria… nada acontece. O objetivo – a dualidade. Ou até, fora dos seus próprios filmes. Pegamos em Rick e temos um ator que face ao insucesso, uma mudança drástica (uma bem-sucedida viagem ao cinema italiano) foi o movimento que lhe permitiu subir a escada de volta ao patamar das estrelas do qual previamente tinha caído. Apesar de esta ter sido uma história real para muitos atores daquela década, talvez Tarantino estivesse a olhar para as suas escolhas de casting. Fala-se do sucesso que John Travolta teve e o fez reerguer das cinzas com Pulp Fiction (apesar de Travolta ser um gato com sete vidas definitivamente) e o mesmo para Pam Grier, estrela dos filmes de blaxploitation dos anos 70 cuja carreira em caminho descendente teve um pico quando foi a estrela em “Jackie Brown”.


Sem dúvida há pano para mangas. Um montão delas, atrevo-me a dizer e convido-vos, estimados leitores a reverem e procurarem todas as referências e pequenos brilhantismos que “Era uma vez em… Hollywood” apresenta. Ou simplesmente, aproveitar o filme com um belo sorriso, tal e qual Sharon Tate fez.




Manuel Fernandes

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