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Falemos de Tarkovsky: A Infância de Ivan



Começa com um sonho. Os bosques estão repletos de vida e apesar de não haver outras cores para além do preto e branco, sabemos que são verdes. Ivan está com sua mãe e pensamos que realmente a vida não pode ser melhor que isto. Até que Ivan acorda do seu sonho e a tonalidade monocromática torna-se na representação perfeita deste mundo que ele vive, em que tem que rastejar pela lama e vaguear sozinho. É nesta fase que aparecem os créditos iniciais, o sonho idílico que vimos não é o que vamos enfrentar mas sim a desolação que é o mundo da Guerra.


Impressionante será saber que Andrei Tarkovsky não foi o primeiro realizador ligado ao filme. Outro jovem realizador já estava a filmar mas o projeto foi abortado e Tarkovsky candidatou-se para o lugar de realizador e o resto é história. Foi este o projeto que lhe deu a fama internacional, com o filme a vencer o Leão de Ouro no Festival de Veneza e reconhecimento de outros grandes do cinema como Ingmar Bergman que disse “A minha descoberta do primeiro filme de Tarkovsky foi como um milagre. Subitamente, encontrei-me à porta de um quarto cujas chaves, até lá, nunca me foram dadas. Era um quarto que eu sempre quis entrar e onde ele andava livremente e com facilidade”. Outros como Sergei Parajanov, bom amigo de Tarkovsky, referem ao filme como uma das influências no seu trabalho. Tarkovsky, ele mesmo, refere “A finalização de “A Infância de Ivan” marcou o final de um ciclo da minha vida, e de um processo que eu vi como um género de auto-determinação”. Era o argumento ideal para Tarkovsky iniciar a sua vida como um realizador conceituado, pois o seu estilo poético e introspetivo adequa-se com perfeição à frieza que o conto original pretendia demonstrar.


Ivan é encontrado por soldados russos e percebe-se que ele terá informações que poderão ser essenciais. Mas Ivan não deixa de ser uma criança e o terrível mundo real tem as suas falhas colmatadas pelo mundo da fantasia. Quando dorme, somos transportados para um sítio melhor, na sua mente. Pelo menos por momentos será melhor pois vamos descobrindo a trágica história deste miúdo através dos seus tristes pensamentos e da sua irreverência perante os militares. À medida que vamos explorando a zona, vemos a destruição total. Não apenas física, pois num pobre homem que por lá vagueia, vemos apenas o que alguém já foi. “Senhor, terá isto um fim?” pergunta ele com uns olhos desesperados e uma expressão vazia.


Provavelmente, a mais memorável e “bonita” cena do filme nem conta com Ivan. Bonita entre aspas porque apesar da inegável beleza, esta imagem nasce não de sentimentos íntimos, profundos e sinceros, mas sim de violência e agreste impulsividade. Os avanços de um capitão russo, Kholin, a Masha, uma enfermeira no exército, resultam nua imagem inesquecível mas vazia pois o que se segue é a tristeza e a perda de inocência. Se a Guerra destrói a humanidade numa grande escala, a violência destrói os indivíduos. Pior que o beijo é a verdadeira paixão pois o tenente Galtsev esconde o que sente por ela, quando será muito provavelmente recíproco. Neste ambiente, nem o amor triunfa.


À medida que vamos avançando no enredo, percebemos que para Ivan, só existe uma única motivação na vida, a vingança. Não há nada mais que ele conhece pois tudo que lhe deram a conhecer foi o terror e a perda prematura daqueles que mais amava. Uma obsessão constante que guia o seu percurso e os seus sonhos. Talvez o mais memorável sonho é na verdade um pesadelo. Ivan ergue um sino (que relembra o trabalho seguinte de Tarkovsky, “Andrei Rublev”) e, na escura sala, revive os momentos mais assustadores da sua vida (assim o depreendo). No meio de tantas faces inexpressivas, ele acaba por confrontar o autor dos crimes de que foi vítima. Ergue uma faca contra um uniforme e grita com toda a força que tem que o levará a tribunal e que será julgado. E subitamente, cai a chorar. Apesar de tudo que viveu que ultrapassa em terrores aquilo que (felizmente) muitos de nós não terão que experienciar, Ivan é ainda uma criança. Ivan ainda não encontrou o seu lugar no mundo e não lhe foi permitido viver nada para além do caos que destruiu tudo aquilo de bom que conhecia. Estamos perante um miúdo que por mais que se revolte contra os outros, e que por mais que mostre a sua faceta dura, não é mais que o símbolo da perda da infância, um período tão importante que tanto molda as nossas vidas futuras. Assim faz a Guerra, aqueles que não morrem fisicamente, também acabam por perder as suas vidas e perder aquilo quem são e que poderiam ser. Ivan torna-se num resistente que combate lado a lado com homens já adultos quando ele deveria estar a fazer aquilo que faz nos seus sonhos, simplesmente desfrutar da juventude.


O filme termina com uma viagem a Berlim quando esta caiu no domínio dos aliados. O capitão Kholin não sobreviveu à guerra, e quanto ao nosso Ivan, ele morreu enforcado. Não era isto que uma criança deveria estar a fazer. As imagens são assustadoras, a câmara treme e deambula de um lado para o outro como quem não percebe o que tem que fazer para nos mostrar o destino final do nosso protagonista. Um trágico fim e aquele que seria esperado. Felizmente, não são estas as últimas imagens que temos de Ivan. Vemo-lo com a sua mãe e amigos, numa praia. Ele parece feliz, parece saudável e limpo e é assim que desejávamos tê-lo visto. Não da maneira terrível que assistimos. Acaba com um sorriso de Ivan. Era assim que deveria ter sido.


Manuel Fernandes

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