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Falemos de Tarkovsky: Andrei Rublev


Tarkovsky foi recebido com sucesso internacional após a sua estreia com “A Infância de Ivan” e depois ser tão badalado, acerca-se a questão “Que se segue?”. A sua proposta foi um filme biográfico, passado na época medieval, sobre uma conhecida figura da História russa, Andrei Rublev. Este homem, que nasceu na segunda metade do século XIV, é considerado o maior pintor russo de frescos e ícones, tendo sido canonizado pela Igreja Ortodoxa Russa em 1988. Porquê esta figura? Segundo o próprio, a ideia original veio do ator, Vasily Livanov, enquanto passeava com ele e Andrei Konchalovsky, em Moscovo. Tarkovsky afirmou “Talvez, eu deveria ter feito um filme contemporâneo sobre um pintor contemporâneo, um artista contemporâne. E deveria ter feito um filme sobre Andrei Rublev para falar sobre o sofrimento de um pintor a sofrer no sentido moderno da palavra? Sobre a sua paixão, procura interna, os sentimentos de melancolia sobre aquilo que ele é incapaz de atingir. Mas eu acho que foi a escolha certa que é isso que o filme deve ser sobre. E a essência do génio é a sua capacidade, nos tempos mais difíceis do seu povo para transmitir ideais morais ao povo para expressar os seus sonhos de irmandade e unidade.” mostrando que com este filme não apresentava o objetivo de criar um filme biográfico, mas sim criar uma experiência imersiva, uma experiência que mostre aquilo que é a criação artística e o que o povo pode retirar da arte. O projeto foi aprovado pela Mosfilm, em 1962, e Tarkovsky juntou-se, mais uma vez, a Konchalovsky para escrever o argumento que demorou cerca de 2 anos a ser escrito (devido à pesquisa de escritos e livros medievais e sobre arte e história medieval), sendo publicado na revista Iskusstvo Kino. O ator escolhido para o papel era um homem desconhecido no cinema soviético. Tarkovsky não queria um ator que fosse facilmente reconhecido pelas audiências para não relembrar outra pessoa que pudesse ser reconhecido como outro para além de Andrei Rublev. Anatoliy Solonitsyn foi o escolhido. Após ler o guião, ele viajou para Moscovo, com o seu próprio dinheiro, para conhecer o realizador e, inclusive, afirmou que ninguém faria uma melhor interpretação que ele. Esta foi a primeiro de várias colaborações entre o ator e o realizador, aparecendo o ator em todos os restantes filmes do realizador, com exceção dos dois últimos, sendo que ele também seria a escolha para aparecer neles, não fosse a sua morte prematura.


O filme está divido em 2 partes, num total de 8 capítulos (chamo eu), antecedidos por um prólogo e finalizados por um epílogo. Neste curioso prólogo, vemos a preparação de uma rudimentar viagem por balão de ar quente que durante algum tempo levanta voo, acabando eventualmente por se despenhar. No entanto, isto pode ser Tarkovsky a dizer-nos que este filme é sobre a intrepidez humana, que procura lutar contra as condições terrestres que lhe foram impostas e deseja conseguir novos voos.

Passamos para o ano de 1400 e temos a primeira imagem de Andrei Rublev, ainda jovem, nesta fase, acompanhado de outros dois pintores, Danila e Kirill. Eles abrigam-se da chuva torrencial num celeiro, onde um grupo de pessoas é entretida por um bobo. Este goza com os boiares, membros da classe aristocrática russa, fazendo até comentários sarcásticos sobre os três homens que procuram refúgio da chuva. Kirill, desaparece sem ninguém notar e, logo de seguida, um grupo de soldados aparece para prender este gozão, deixando-o inconsciente e partindo até o seu instrumento. Não há dúvidas da repressão do povo russo que nem na companhia dos seus iguais pode imaginar gozar com aqueles de uma classe mais alta.

No ano de 1405, é apresentado Teófanes, o Grego, um respeitado pintor que será um mentor para Rublev. Kirill conhece o Grego e neste diálogo, mostra reconhecer a sua capacidade artística, acabando por descrever também com perfeição a beleza no traço de Rublev, afirmando, porém, que lhe falta algo para ser sagrado (comentários invejosos). Téofanes é um homem brilhante, afirma “Muita sabedoria, muita tristeza. Quem multiplica o saber, aumenta a sua angústia”. Saber é reconhecer a insignificância no mundo. Também pode ser um caminho para novas conquistas. Teófanes confidencia a Kirill que necessita de ajuda na decoração da Catedral da Anunciação, em Moscovo e convida-o a trabalhar neste projeto. Kirill aceita, mas indo mais longe, fá-lo-á se Teófanes o convidar pessoalmente a realizar este trabalho, e na presença da sua fraternidade e mais concretamente, de Andrei Rublev. No entanto, é enviando um mensageiro que faz precisamente este convite, mas a Rublev e não a Kirill. Teófanes não gostou da insolência de Kirill, e um artista não é medido pelo orgulho, mas sim pela sua arte. Danila recusa-se a acompanhar Rublev pois não lhe foi pedido o mesmo. Rublev confessa a Danila que apesar desta honra que não se sente capaz de nada e que se mede pelas palavras e pela amizade que tem por ele, o que leva a um caloroso pedido de desculpas da parte de Danila que reconhece o mal na sua ação. Já Kirill, dominado pela inveja e pela fúria, afirma que só ele é um homem de Deus, pois os outros encontram-se tentados pela promessa de vida eterna pela arte e rejeitam ser verdadeiros cristãos. “Está escrito Jesus entrou no templo e expulsou dali os vendilhões. Derrubou as mesas dos cambistas e os bancos dos negociantes de pombas e disse-lhes: Minha casa chama-se Casa de Oração, mas vós fizestes dela um covil de ladrões”, diz Kirill para se referir à “traição” dos seus colegas monges. Vemo-lo ir-se embora, percorrendo a neve, sendo seguido pelo seu fiel cão, mas a fúria que o domina leva-o ao impensável. Ele mata o cão que apenas procurava o seu amor e assim, mata também a sua fidelidade.

No ano de 1406, os trabalhos já começaram, e assistimos a uma importante conversa entre Teófanes e Andrei. Teófanes afirma que o povo é idiota porque o é. Que peca e que espera que Deus o perdoe. Que se Cristo voltasse à Terra, não traria a salvação, apenas seria novamente crucificado. O conhecimento é mal-visto e a burrice é justificada pela religião. Contrapondo estas ideias, Andrei refere a fragilidade da vida humana, e que é Deus quem comanda as vidas, pois Jesus foi crucificado por ordem de Deus e o povo apenas faz aquilo que Deus escreve. Estas ideias são ilustradas com uma recriação da crucificação nas brancas paisagens russas, dominadas pela frieza do ambiente. Teófanes mostra o seu cinismo, enquanto que Rublev defende a sua fé em Deus, que de momento parece inabalável.

Dois anos depois, assistimos a um dos mais fantasmagóricos e misteriosos episódios alguma vez representados no cinema. Uma multidão com tochas corre pela colina. Eles estão nus e celebram um ritual pagão. Apesar de ser um devoto cristão e não ceder ao pecado, uma lindíssima mulher capta a atenção de Rublev. Ele segue-a, porém, é apanhado e amarrado numa forma que goza com a crucificação de Cristo. Grita “O Fogo dos Céus queimar-vos-á. Esperai pelo Juízo Final.” Mas as suas ameaças não assustam quem não acredita em Deus. Uma mulher vestida apenas com um casaco de peles aproxima-se do prisioneiro. Rublev diz “É pecado andar nu e fazer isto tudo.”, mas a ela pouco lhe importa a fé de Andrei. Segue-se um diálogo muito interessante. A mulher diz: “A noite de hoje é especial, todos devem amar-se. Será pecado amar?”; eventualmente, Andrei diz “Só tem medo quem não ama ou vive um amor pecaminoso e bestial. O amor deve ser fraterno.” e a resposta: “Qual a diferença? É sempre amor.”. Ela beija-o e Andrei mostra-se num turbilhão de emoções. Está incrédulo, está envergonhado, está pensativo. Só quer fugir dali. Quando volta a encontrar-se com os seus colegas, nem consegue explicar o que lhe aconteceu. Curiosamente, eles assistem à captura de alguns destes pagãos, incluindo a mulher com quem discutiu sobre o que constitui a verdade na moral. Ela consegue fugir. Um dos perigos do extremismo religioso, tudo de diferente tem de ser destruído pois é pecaminoso. E este episódio é capaz de ser o mais importante da vida de Andrei, pois, pela primeira vez, sentiu-se fraco quando fazia algo de bem. Deus não o protegeu daquela gente que vive em óbvio pecado. Estas pessoas andam nuas, fazem amor desenfreado e gozam com os demais. Não deveriam ser permitidos estes atos e deveria prevalecer o bem. Eles foram perseguidos no final, mas nada impediu Andrei de ser humilhado quando fazia algo que era o correto aos olhos do Cristianismo. Começam as dúvidas na fé.

No Verão, as paredes da Igreja em Vladimir, onde Rublev e os restantes monges trabalham, continuam brancas, apesar de lá estarem há já dois meses, e a impaciência começa a dominar os homens que lá trabalham. Tal nasce da falta de vontade de Rublev em pintar “O Juízo Final”, algo que vê como uma forma de forçar o povo à submissão. De acreditar pelo medo e não pela fé. Rublev quer transmitir pela arte aquilo que ele acredita e não fazer pinturas que em nada são a experiência pessoal dele. Uma disputa entre o Grão-Príncipe e o seu irmão leva a um ataque aos artesãos de Rublev que trabalhavam também para o seu irmão. O Grão-Príncipe, furioso, encomendou este ataque e que fossem arrancados os olhos dos artesãos para que não pudessem realizar o seu trabalho. Andrei não recebe bem esta notícia e deixa-se dominar pela melancolia. Triste por perder os seus amigos que lhe são como irmãos e triste pois o trabalho dificulta-se ainda mais. Uma mulher entra na igreja e vê a tinta que Rublev atirou furiosamente contra a parede branca que destoa da restante igreja. A sua tristeza ao ver o quão erradas as cores estão acaba por ser a fonte de inspiração de Andrei, pois nela viu, aquilo que a ignorância do povo procura na arte e na fé.

No Outono, assistimos ao mais sangrento episódio de todo o filme e também das mais terríveis batalhas que o cinema permite assistir. Não pela grandiosidade dos combatentes, mas pelo realismo e sanguinidade deste momento. Não é a típica luta medieval em que os dois exércitos cavalgam corajosamente um contra o outro, gritando da mais feroz maneira que conseguem. Não agitam a sua espada de forma espetacular nem vemos maravilhosos duelos que nos fazem sonhar com as mesmas habilidades. As lutas são desorganizadas e mortíferas. Corpos estão constantemente a cair e inocentes são perseguidos. Foi espetacular a forma como Tarkovsky criou estas imagens. Quanto aos intervenientes, o irmão mais novo do Grão-Príncipe uniu-se aos Tártaros e invadiu Vladmir. A Igreja encontra-se barricada pelos pobres habitantes que nela procuram refúgio. O desespero domina os fiéis que nada mais têm a seu dispor senão rezar a Deus por salvação. Entre eles, está Andrei Rublev. Agora, as paredes brancas que vimos uns meses atrás estão completamente preenchidas de belos frescos e figuras. A mulher que ajudou Rublev a ultrapassar a sua inatividade artística também se encontra na Igreja, sendo agarrada por um soldado que certamente a iria violar, não tivesse sido morto por Andrei. Após toda a chacina e destruição, da qual o seu trabalho não sobreviveu, Andrei, um dos poucos sobreviventes, imagina uma conversa com Teófanes. Expressa toda a sua dúvida divina e o erro que foi tudo aquilo que disse sobre o bem da humanidade, pois agora olha e vê que nem a arte sobrevive à tirania do homem. Mas Teófanes tenta restabelecer a sua fé (será Andrei a falar consigo mesmo, tentando provar que apesar de tudo o que passou, não perdeu a sua fé), mesmo quando Rublev confidencia que matou um homem. “Para mal dos nossos pecados, o mal ganha uma aparência humana. Quem atenta ao mal atenta à carne e osso humano. Deus te perdoará, mas tu não o deves fazer. Vive entre o perdão e o teu próprio tormento.” é a resposta de Teófanes que leva Andrei a tentar procurar uma vida mais próxima do bem. Fazer o bem, será a forma de restabelecer o seu lugar junto de Deus. Ambos os homens olham, e apreciam a beleza dos frescos que sobreviveram, até que Teófanes desaparece. Apesar de tudo, e contra aquilo que se esperava, a fé de Andrei é forte e não se deixa cair no desespero.

Em 1412, vive-se um período marcado pela fome e pela Guerra. Andrei, fez um voto de silêncio para redimir o seu máximo pecado, o da morte, tendo largado também o seu ofício como artista. No Mosteiro de Andronikov, onde os três monges que vimos pela primeira vez em 1400 viviam inicialmente, encontramos o desaparecido Kirill que passando por muitos tormentos, implora que seja aceite outra vez pelo Mosteiro. Relutantemente, é aceite de volta, com a promessa de copiar 15 vezes as Escrituras Sagradas. Este acontecimento permite o reencontro entre os dois homens cujos caminhos os tinham separado. Ambos procuravam atingir algo com a arte, mas ambos parecem ter falhado nesse aspeto. Pelo menos, aos seus próprios olhos. Andrei está desapontado consigo mesmo e com a esperança que depositou na humanidade. Kirill após uma vida conturbada e sem reconhecimento, resignou-se ao seu posto original. Apesar de tudo, ainda falta um bom pedaço do filme e Tarkovsky ainda não terminou.

O último capítulo inicia-se em 1423 com final em 1424, poucos anos antes da morte de Andrei Rublev. Seguimos um jovem chamado Boriska, o filho de um afamado construtor de sinos (este jovem é facilmente reconhecido como o jovem Ivan em “A Infância de Ivan” que mais uma vez trabalha com Tarkovsky). Alguns homens foram enviados pelo Príncipe para buscar o seu pai a fim de fundir em bronze um sino para a Igreja. No entanto, Boriska informa que a sua família sofreu os males da peste e que só ele possui os segredos para construir o sino. Acabam por trazer o jovem, por falta de melhor. Andrei Rublev aparece curiosamente no local da construção do sino e observa silenciosamente. O nosso protagonista, antes tão cheio de ideias, com tantas palavras para dizer e que tanto tinha para dar, agora não tem mais que um vazio emocional. Como se o homem que conhecemos tivesse sido substituído por um semblante profundamente desolado. Surpreendentemente, o bobo que vimos há vinte e três anos, reaparece, confundindo Rublev com Kirill, que o denunciou há tantos anos atrás, ao que parece. Ameaça matar Rublev, não fosse, curiosamente, Kirill terminar com a confusão e até dizer que deve tê-lo confundido com alguém. Kirill até se oferecer para sofrer a fúria deste homem que passou dez anos preso e foi torturado (que na realidade é mesmo direcionada às ações dele), no entanto, o gesto de Kirill apazigua a violência. Rapidamente, o bobo busca uma bebida e retorna à sua profissão, a de entreter o outro, enquanto ridícula os boiares. Os hábitos são difíceis de quebrar. Quanto ao sino, torna-se num projeto gigantesco movido apenas pela cobiça de uma criança que não possui a razão e confia no instinto. Kirill confidencia a Andrei que foi munido de uma venenosa inveja, pois nele não havia o talento para a arte. Rapidamente, o pedido de perdão torna-se numa tentativa de reviver o passado, de gritar a Deus porque deu a um pecador como Rublev tanta capacidade e a ele, que se vê como alguém digno, tantos castigos e obstáculos durante a vida. Kirill por ter tanto medo de Deus, deixou-se levar por tantos erros que até o silêncio de Andrei o conseguiu destruir. Andrei, na sua fé, também se destruiu, por não conseguir aceitar que a Humanidade fosse tão vil e que sua arte que era feita em honra da sua fé, pudesse ser tão menosprezada por aqueles que se chamam de crentes quando apenas crentes são quando necessitam de se queixar das maleitas da vida. Voltemos ao sino. Este está quase pronto, só que, afinal, as coisas são mais complicadas para Boriska, que nesta fase, cada vez menos acredita que o sino irá soar. O Grão-Príncipe visita o local para verificar o resultado final da obra. Se este não soar de forma perfeita, Boriska e a sua equipa serão decapitados (tal como foi o irmão do Grão-Príncipe). Há uma tensão enorme, mas o sino acaba por soar e ressoar de uma forma brilhante. Rublev encontra Boriska caído no chão, colapsado pela sua própria emoção. Andrei está impressionado com o trabalho fenomenal do jovem e o impacto que este tem na multidão. Boriska revela que o pai nunca lhe ensinou o seu segredo, mas Rublev não quer saber disso, diz “Vamos juntos, tu e eu. Tu, fundirás sinos; eu, pintarei ícones.”, quebrando o seu voto de silêncio, ao encontrar algo de bom. Ao encontrar provas de que as pessoas podem encontrar a felicidade na arte e que este miúdo que não passa apenas de uma criança, conseguiu fazer um trabalho fenomenal, confiando apenas no seu instinto. Não há razão para Andrei, ele mesmo, ter de se dar ao silêncio e privar o mundo da sua arte.

De repente, o mundo ganha cores. Contemplamos os ícones pintados por Andrei Rublev e que ainda hoje sobrevivem. É uma experiência religiosa até. Durante tanto tempo estivemos presos a um mundo violento e preso à tristeza e, subitamente, vemos aquilo que Andrei viu. O seu trabalho estonteante com as fantásticas cores que tanta vida lhe dera. O filme termina com a imagem de quatro cavalos, sendo que fomos vendo vários ao longo do filme. Perdoe-me caro leitor, por tanto ter escrito, mas seria difícil tirar conclusões sem primeiro referir e retirar algumas ideias dos mais importantes episódios que vimos. Neste épico medieval, em que vivemos num ambiente austero, sem cor (literalmente) e dominado por uma crença profundo no cristianismo, Tarkovsky obriga-nos a refletir não só sobre a arte e o artista, mas também sobre as nossas crenças. No caso de Tarkovsky, reparamos nas suas próprias questões face ao Cristianismo, a sua religião. “Arte é uma meta-linguagem, com a ajuda da qual as pessoas tentam comunicar uma com a outra; para transmitir informações sobre elas mesmas” escreveu Tarkovsky. Em “Andrei Rublev”, Tarkovsky procurou mostrar aquilo que é a experiência artística da vista de quem cria arte. Um filme biográfico, procuraria centrar-se ao máximo no protagonista e aquilo que foram os seus sucessos e falhanços como pintor e criador de ícones, mas nós vamos acompanhado Rublev em vários episódios onde a sua experiência pessoal vai moldando aquilo que ele tenta transmitir através da arte e por isso, não será este um filme verdadeiramente biográfico, mas sim um dos vários poemas cinemáticos de Tarkovsky, onde vamos sendo confrontados com pensamentos provocadores e profundos sobre a própria existência humana. E falar da experiência pessoal de Andrei é falar da sua fé que tantas vezes foi colocada à prova. No início, vemos Rublev à procura de transmitir da melhor forma possível a palavra de Deus através da sua arte. A sua arte representa episódios cristãos e adorna igrejas e outros locais de culto. Ele não se demove da sua fé em Deus, mesmo quando questionado pelo seu mestre que evidencia o seu pensamento inteligente e crítico da humanidade. O episódio com os pagãos coloca a dúvida porque permite-lhe ver para além do que conhece. Pessoas a viver em pecado e no entanto a viver bem e felizes. Quem os persegue não é Deus, mas sim o Homem, que Rublev interpreta como a Mão de Deus, mas a dúvida está instaurada. Ele procura, apesar de tudo, usar a sua arte da melhor forma a servir a sua relação com Deus e com os Homens e daí a demora pois se a arte for apressada, não será algo íntimo e se não for íntimo, não é arte. Eventualmente, a bela criação dele é destruída pela violência da natureza Humana e com ela, também seria a sua fé, só que Rublev não larga em total plenitude dos seus pensamentos e procura usar a sua vida de forma a servir melhor Deus (se não for pela sua arte que claramente não serve a Humanidade, será pelas suas ações como monge). Eventualmente, o espanto com a criação do Sino, restaura totalmente a fé não só em Deus, mas também na sua capacidade de usar a arte como a sua maneira de expressão, criando uma experiência maravilhosa com aqueles que a admiram. Quanto aos cavalos, acho que a minha interpretação não é digna de estar nesta análise por isso, despeço-me com as palavras do próprio Andrei Tarkovsky, relativamente ao assunto: “Eu gostaria de apontar que o filme termina com a imagem de cavalos à chuva. É uma imagem simbólica visto que para mim o cavalo é sinínimo da vida. Quando olho para um cavalo, sinto que estou em contacto direto com a própria essência da vida. Talvez seja porque o cavalo é um animal lindíssimo, amigável para com o homem e mais que isso, característico da paisagem russa. Há imensas cena com cavalos em Rublev. Olhem para cena em que um homem morre após uma tentativa falhada de voo. Um cavalo com um ar triste é uma testemunha silenciosa da cena. A presença de cavalos na cena final significa que a própria vida é a fonte de toda a arte de Rublev”.


Manuel Fernandes

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