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Falemos de Tarkovsky: O Espelho



Com a estreia de “Solaris”, tornou-se evidente que o estilo de Andrei Tarkovsky era essencialmente poético. E este estilo seria levado ao limite com o filme que iria concluir alguns anos mais tarde, intitulado de “O Espelho”. Tal como o nome sugere, este filme seria um reflexo do próprio realizador, não há nada mais genuíno que espelhar a nossa própria vida na arte. A ideia para o filme já existia desde 1964, tendo sido o primeiro guião completado após ter finalizado “Andrei Rublev”. No entanto, o guião não foi aprovado devido à sua natureza virtuosa, não-linear e altamente complexa. Isso não o fez desistir de um dia completar este filme e após “Solaris”, o guião foi finalmente aprovado. No seu livro “Esculpir o Tempo”, Tarkovksy escreveu: “A qualidade da beleza está na verdade da vida, recentemente assimilada transmitida pelo artista, de uma forma fiel à sua visão pessoal”. É facilmente percetível o enorme desejo que ele tinha em concluir este filme e, assim, transmitir cinema na forma mais fiel à sua pessoa, para dar ao resto do mundo.


A estrutura de “O Espelho” não se rege pelas mesmas regras que têm lugar no nosso mundo. O passado, presente e futuro tornam-se redundantes e apenas existe tempo, uma linha temporal que mistura episódios com a existência sincera de quem os viveu. A memória não é algo objetivo, e está dependente daquilo que desejamos que as vivências sejam. Houve certos eventos que, por exemplo, eu nunca vivi, mas que consigo recordá-los. Confrontado outra pessoa que esteve presente nesse mesmo momento, poderá haver uma concordância total ou uma disparidade máxima no que toca à maneira como ocorreu, ou se sequer ocorreu. “O Espelho” poderá ser interpretado desta simplíssima forma. Recordações espalhadas pelo tempo, não com o objetivo de confundir quem vê esta obra, mas sim revelando a tangência que existe entre a essência de ser e a falibilidade da mente. É a compreensão de uma vida. E nas nossas memórias, não estão simplesmente as narrativas daquilo que vivemos ou pensamos ter vivido, os nossos sonhos também marcam o nosso âmago e ficam para sempre gravados no meio da dissociação entre o real e onírico.


É desta forma, que no mundo refletido por este espelho (o ecrã em que vemos o filme), é possível existirem imagens tão perturbadoras e belas como uma mulher que caminha por uma casa que rui lentamente, e onde a chuva se torna nas lágrimas de um edifício que vai morrendo e nada pode fazer para abrandar esta forma terrível que é perder para sempre o tempo e a forma. Ou quando uma casa em chamas, com um vermelho exuberante contrasta com o verde da natureza, formando uma imagem operática e de uma pequena grandeza que não abandona os nossos olhos. Tal como as crianças, ficamos a vê-la a arder, impotentes, estando só à mercê das nossas emoções. Ou até será a razão pela qual Andrei Tarkovsky escolheu a mesma atriz para fazer de Mãe do Narrador e da sua ex-mulher, Natalya. Uma extensão de um complexo de Édipo? Talvez só uma forma fácil de revelar a semelhança física das duas mulheres, aposto mais na primeira hipótese. A certa altura, Natalya reconhece a semelhança que tem com a mãe do Narrador, já ele nega, com o medo do que essa afirmação poderá verdadeiramente significar. Talvez esta será a altura ideal para revelar que este Narrador, um Poeta que é o nosso desconhecido protagonista, é interpretado por Arseny Tarkovksy, pai do realizador. Os poemas que ele lê durante o filme foram redigidos por ele mesmo, complexando ainda mais o filme, que sendo essencialmente autobiográfico, é-o de uma forma não só autorreferencial, mas também heterroreferencial (palavra que não faz parte do léxico português, peço-a emprestada do espanhol, na esperança que venha a ser adaptada na nossa língua).


Tal como a narrativa do filme, que cruza o tempo e alterna entre o preto e branco, cores e sépia, este artigo não está a seguir a cronologia do próprio filme. Não é um simples devaneio despropositado, nem uma decisão deliberada. Tal como esta obra, escrever sobre os seus elementos resulta melhor se feito de uma forma circular. Falando das partes finais, retornando às iniciais. Como se poderá perceber à medida que se avança com o filme, todas estas vinhetas/sequências vêm da mesma mente. O nosso Narrador está a morrer aos poucos, e sem chance alguma de poder reaver a saúde que antes lhe dava vida, nada mais tem a fazer senão pegar no que resta e contar a quem quer que esteja a ouvir. A sua arte é a poesia, e em nós mesmos está a poesia mais bela. As histórias que contamos serão mais harmoniosas se vieram “do coração” como se diz na linguagem corrente, eu prefiro dizer se forem genuínas, se forem ditas com uma grande certeza e conseguirem provar a quem as ouve que são a plenitude e o castigo que é ser humano.


Numa destas vinhetas, uma mulher está de costas para nós. Não percebemos bem como é, mas a forma como ela existe em conciliação com o mundo gelado e branco que a rodeia, faz-nos acreditar que se trata da personificação da perfeição. Imediatamente, cortamos para uma carreira de tiro, talvez no mesmo local. Várias crianças, incluindo o nosso Poeta, estão a treinar as suas habilidades bélicas. Entre estas cenas que estão a cores, há uma alternância com imagens de arquivo de soldados soviéticos, estas a preto e branco. O horror da guerra que interrompe a beleza da infância, toda uma geração foi marcada por este acontecimento, e a que se seguiu sofreu com as consequências dessa mancha negra. Um exemplo das muitas vivências a que temos acesso nesta peça cinemática.


Talvez por ser o mais íntimo filme de Tarkovsky é que as composições visuais são tão intensas, dramáticas, espetaculares e belas. Podemos dizer isto de qualquer filme que ele tenha feito, mas “O Espelho” consegue destacar-se pela forma pura com que o tempo é abordado. Sempre com carinho pela memória e pelo sonho. Sempre com amor pelas pessoas que permitiram criar este percurso. E também as composições musicais têm um impacto gigantesco na forma como estas histórias são contadas. Tantas imagens são memoráveis neste filme. Uma mulher, sentada numa cerca vê um homem a aproximar-se e nela focamos, enquanto vemos o estranho a entrar neste quadro. Ou talvez a mais espetacular de todas, que terá influenciado Manoel de Oliveira que recriou, com mais de 100 anos de idade, a mesma imagem fantasmagórica em “O Estranho Caso de Angélica”. Uma mulher que flutua num mundo sem cores. Das imagens mais inesquecíveis alguma vez criadas no cinema. Realidade ou sonho? Será ambos?


“E contou-me, como um monge que eu pereceria, peguei no meu destino e amarrei-o à minha sela; E agora que cheguei ao futuro ficarei, Ereto sobre os meus estribos como um garoto, Só preciso da imortalidade, Para que o meu sangue continue a fluir de era para era.” Este excerto, declamado durante o filme, permite resumir excelentemente todos os temas desta obra. Com a morte a olhar-nos diretamente, tudo aquilo que forma a minha pessoa torna-se num círculo perfeito. Todos as vivências criam uma única entidade, e a ela chamamos vida. “Tenho a sensação de já ter vivido isto” diz uma criança a certa altura. Certamente o terá feito, quando pesamos a vida da mesma forma que Tarkovsky fez.

Manuel Fernandes

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