top of page
Foto do escritorunderscop3

Falemos de Tarkovsky: O Rolo Compressor e o Violino



Falar da História do Cinema, é falar de Andrei Arsenyevich Tarkovsky, um dos mais influentes realizadores que alguma vez existiu, com um estilo tão distinto e íntimo que ainda hoje o seu escasso conjunto de obras-primas maravilha leva a intensos debates entre os cinéfilos. Nascido na antiga União Soviética, Tarkovsky iniciou o ensino superior no Instituto Gerasimov de Cinematografia, no curso de realizador, numa altura em que o cinema soviético não apresentava um grande número de produções cinemáticas, e as que produzia estavam essencialmente reservadas aos mais veteranos realizadores. Felizmente, em 1956, inicia-se o “Degelo de Kruschev” onde se inicia uma política de “desestalinização”, levando a uma diminuição da censura e repressão política. Isto permitiu aos jovens realizadores consumir cinema internacional de vários países com uma bem-desenvolvida cultura cinematográfica como a Itália, França, Espanha, Japão e até dos Estados Unidos da América. Autores como Antonioni, Bresson, Kurosawa, Mizoguchi, Bergman, etc… tiveram assim bastante influência no realizador ainda em formação. Durante o curso, Tarkovsky realiza duas curta-metragens (uma adaptada do conto “Os Assassinos” de Ernest Hemingway) e para obter o diploma de curso, juntamente com Andrei Konchalovsky (colega de curso de Andrei Tarkovsky e futuro famoso realizador soviético) escreve um primeiro guião que não é aprovado pela Lenfilm. Já o guião que escreveram, intitulado de “O Rolo Compressor e o Violino” foi aprovado pela prestigiada companhia “Mosfilm”. Mesmo na sua juventude, Tarkovsky mostrou a sua perseverança pela arte, tentando obter os serviços do cinematógrafo Sergei Urusevsky que tinha filmado o aclamado vencedor da Palme d’Or “Quando Passam as Cegonhas”. Sem sucesso no entanto, mas nada o iria impedir de começar a sua jornada com um filme que não só tinha o dobro da duração dos habituais filmes de graduação como também, acabaria por ganhar o Primeiro Prémio do Festival de Cinema de Nova Iorque para Estudantes.


Ao contrário das restantes obras de Tarkovsky, “O Rolo Compressor e o Violino” segue uma premissa simples mas rica que funciona como um primeiro poema do realizador e previsão dos seus futuros trabalhos. Seguimos um miúdo que desce as escadas, chama-se Sasha e vai para a sua aula de violino. Esta criança deverá ser recorrentemente intimidada por outro grupo, pois não parece ser a primeira vez que que eles o assustam e gozam, chamando-o de “músico” como se tal fosse pejorativo. Inveja talvez daqueles que têm acesso a algo tão belo como a música. Um homem afugenta os chatos, e é nele que temos o nosso segundo protagonista, apesar de ainda não o sabermos. Talvez nesta criança, vejamos o modo como o próprio Tarkovsky vê o mundo. Olhando para coisas simples, cria estranhas mas intrigantes composições. No mundano procura aquilo que facilmente poderia passar despercebido ou ignorado mas que certamente terá valor para os olhos de quem consegue “ver”.


Passemos à aula de violino, enquanto aguarda, um outro miúdo abandona a lição, cabisbaixo e com lágrimas que perfuram o nosso coração. Tudo porque teve um “Bom” e não a nota máxima, ainda que sua mãe o tente confortar, enaltecendo o valor da sua prestação, nada parece suficiente para formar o esboço de um sorriso. Será este o clima em que vivem estas crianças? Uma obsessão pela “nota máxima” em que nada que se assemelhe ao “Excelente” será suficiente? É importante lutar pelos melhores resultados. Mas tornar essa demanda a nossa única fonte de satisfação (e grande fonte de dessatisfação quando envolto pelo falhanço) pode ser perigoso. Quando Sasha sai da sala, não vemos o modo como o faz, apenas o fazemos pela expressão da menina que também aguarda para ser a próxima do “julgamento”. A cara de Sasha não é mostrada, apenas reparamos no modo depressivo como enfrenta a saída. O que aconteceu ao outro rapaz deverá ser o que se passa com o nosso pequeno “herói”.



À saída, Sasha retorna a encontrar-se com o homem que há pouco o “resgatou”. Trabalha com um Rolo Compressor e estes dois formam uma curiosa amizade. Sasha até passa a conduzir o Rolo Compressor, algo que impressiona os outros miúdos (e este ato acaba por castigar os mais mauzinhos). E mesmo com esta nova admiração, nada impede que um dos invejosos ataque o nosso pequeno amigo. Tem que ser o novo companheiro a chamá-lo. Fá-lo de uma forma descontraída, como quem diz “Deixa lá, ossos do ofício, agora há que seguir em frente e ser mais forte do que antes, o medo não te pode consumir”. É notável o fosso entre os artistas e o povo trabalhador, Sasha não o compreende, mas a arte não é acessível a todos, e neste mundo ele tem a possibilidade de algo fantástico que os demais não. O que o impressiona não é o seu instrumento (que o seu novo amigo, Sergei, olha como algo mágico), mas sim a demolição de um edifício que através dos seus olhos se torna algo esplendoroso. Poderá ser a primeira vez que este jovem passa a ver o mundo através de olhos que não os seus. Para Sergei, o simples ato de pegar no violino e aprender como funciona é espetacular. Ouvir Sasha a tocar é inesquecível. Naqueles momentos, a criança consegue expressar-se da forma mais pura possível, é através desta sua arte que melhor consegue ser ele próprio, apesar de ele não o saber, reforço a ideia. Após esta aproximação entre dois mundos distintos, percebemos como é a vida de Sasha. O condicionamento pelo correto, pelo estar arranjado e pela ordem regem o ambiente familiar. Os dois amigos tinham combinado ir ao cinema e o simples facto de o seu filho ser amigo de um operário deixa a sua mãe estupefacta. Sergei esperava por Sasha, mas este não vem. Sasha lança um avião de papel, na esperança de que este chegue ao seu novo amigo, mas Sergei não repara. O operário acaba por ir ver o filme com uma bonita jovem e certamente fica por aí o companheirismo entre o rapaz do Violino e o homem do Rolo Compressor. Na sequência final, entramos na cabeça do miúdo sonhador, um mundo em que duas pessoas de estatutos tão diferentes podem simplesmente formar uma amizade. Por aí ficamos.


“O sonho comanda a vida” disse Manuel Freire. Em “O Rolo Compressor e o Violino” o sonho torna-se no escape da realidade, com a infelicidade de que no final, só o mundo exterior é que reina. Nos nossos sonhos, podemos ser amigos daqueles que se tornam nos nossos ídolos, por mais simples que a pessoa seja. Na realidade, o fosso social torna-se no conflito entre as pessoas. Melancólico, mas assim é o trabalho de Andrei Tarkovsky. E nessa melancolia, encontramos a beleza do mundo, nela estão os poemas da vida.




Manuel Fernandes

12 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page