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Falemos de Tarkovsky: Solaris



Depois de terminar “Andrei Rublev”, Andrei Tarkovsky necessitava de arranjar um projeto novo, visto que o seu filme foi considerado anti-histórico pela censura soviética, tendo só sido lançado para uma audiência internacional em 1969, no Festival de Cannes. Mesmo assim, e apesar dos esforços soviéticos, “Andrei Rublev” (que foi impedido de competir pela Palmar de Ouro) ganhou o prémio FIPRESCI e acabou por ser lançado na França e noutros países. Escolheu adaptar uma obra de Stanisław Lemm pois este era um respeitado escritor soviético e mais facilmente seria um projeto aceite. Para além disso, ele desejava fazer um filme de ficção-científica. Tarkovsky tinha visto “2001: Odisseia no Espaço” e, contrariamente ao que penso, disse “O “2001: Odisseia no Espaço” é falso em muitos níveis, até para especialistas. Para um verdadeiro trabalho de arte, a falsidade tem que ser eliminada. É um dos grandes contrastes entre o trabalho destes realizadores. Kubrick é mais cínico, Tarkovsky dá-se mais ao sentimento. Neste sentido, decidiu criar um filme que se passa no espaço (e daí as óbvias influências de 2001: Odisseia no Espaço) mas em que o foco não era a evolução tecnológica ou falar sobre a humanidade, mas sim a emoção humana.


Não é surpreendente que “Solaris” se inicie com imagens da natureza. Kris Kelvin é um psicólogo e ele está no exterior, simplesmente em comunhão com a natureza. Estas imagens não estão lá só porque são belas, efetivamente são, mas elas têm um efeito diferente em cada um de nós. E se estivermos quebrados como Kelvin está, olhar para a água, para as plantas, sentir os leves movimentos e simplesmente deixar esta solidão. Muito do filme se baseia nesta ideia, na poesia da imagética, do efeito que tem em nós. E nesta fase, sabemos que há algo que faz Kris Kelvin estar tão bem naquela solidão, naquela beleza. Apesar de Kelvin dizer que ele não é um poeta, todos sabemos que há poesia dentro de cada um. Que se nos dermos a isso, que conseguimos entrar em contacto com os nossos sentimentos mais profundos que muito dizem de nós mesmo.


O planeta Solaris está envolto em mistério. Henri Berton é um antigo piloto que tinha sido enviado para estudar o planeta e acabou por voltar ridicularizado ao referir episódios absurdos que lá se passaram. Ele afirmava que tinha visto um recém-nascido com quatro metros de altura, uma referência direta ao filme de Stanley Kubrick. Foi pede a Kelvin que faça uma investigação à estação espacial de Solaris, avaliando se este projeto deva ser terminado ou não. Berton acrescenta no final que esse recém-nascido gigante era a cara chapada de uma criança que foi adotada por um homem que faleceu em Solaris. A referência da existência de dois seres exatamente iguais, sendo que um é humano e real e o outro algo completamente absurdo é apenas o primeiro de vários acontecimentos bizarros de Solaris. A seguir, começa uma sequência famosa que consegue enraivecer muitos elementos da audiência. Uma longa cena em que vemos uma longa autoestrada. A imagem muda constantemente de cor. Andrei Tarkovsky afirmou que a tornou tão longa para que os mais impacientes saíssem do filme, mas este realizador não é homem para ter atos destes. O facto de em tanto variar a cor da imagem, poderá remeter para a dualidade da imagem vista e sentida. A realidade e a imaginada.


A estação espacial em Solaris parece que está desabitada há anos. Tem um aspeto futurístico e a tecnologia é rude na sua apresentação. O espaço que estava designado para oitenta e cinco pessoas, agora alojava apenas três. As câmaras estão todas desarrumadas, papéis espalhados pelo chão, os restantes cientistas não estão a desempenhar as suas funções e encontram-se sujos. Ao conhecer o Dr. Snaut, que parecia estar a brincar sozinho com uma bola, Kris descobre que o Dr. Gibarian se suicidou. Snaut refere também que se Kelvin começar a ver coisas esquisitas que não se assuste. Antes de fechar a porta, Kelvin repara que uma criança parecia estar no quarto de Snaut, algo que seria impossível, visto que nenhuma criança foi enviada para a estação espacial. O Dr. Sartorius também apresenta um comportamento esquisito, como quem quer esconder alguma coisa. Ele escondia um anão no quarto. Kelvin olha para o exterior e ao ver o mar profundo do planeta Solaris, uma mulher passa por ele. É a sua mulher, algo impossível por duas razões: primeiro, ela não viajou com ele; segundo, ela já morreu. Kris também tem uma conversa com o Dr. Gibarian, cujo cadáver vimos anteriormente. A grande questão que Tarkovsky coloca aqui é “O que significa existir?”. Kelvin subitamente está num quarto com a sua falecida mulher e ela age como se isso nunca tivesse ocorrido, ela nem consegue perceber que a fotografia que Kris trouxe é dela mesma. Ela conhece o Dr. Snaut, apesar da verdadeira Hari nunca ter ouvido falar dele durante a sua vida e sente-se assustada pela ideia de ter que abandonar Kris. Começa a ser óbvio o efeito que Solaris tem nos seus visitantes. As suas memórias são materializadas e a partir da imagem que cada um tem de outras pessoas, nasce um novo ser. Mas esta Hari é bastante diferente daquela que existiu, ela apenas conhece o mundo através de porções daquilo que Kris conhece ou pelo menos da forma como Kris imagina como Hari era. No entanto, ela está lá, ela existe. Podemos realmente dizer que ela é alguém? A única solução que Kris encontra é a de destruí-la. Coloca-a numa cápsula e envia-a para o espaço. Será correto? Se ela for alguém então é homicídio. Mas se não for, então podemos ver como uma solução eficaz para Kris. Apenas estava a livrar-se de alguma “bagagem emocional”. No entanto, é verdade que ela estava lá, dava para tocar nela, ela tinha ideias e memórias, mesmo que fossem de Kris. A questão é cada vez mais difícil de responder.


A própria materialização das memórias que Kris tem de Hari, que reaparece após a primeira ter sido enviada para fora da estação, começa a ficar confusa com a sua existência. Ela não percebe o que é, não percebe porque se magoa na ausência de Kris ou porque de repente as suas feridas desaparecem. Imaginem perceber que todas as nossas memórias não são nossas e que realmente nunca existimos (“Matrix” explora esta questão meta-física de uma maneira diferente, mas igualmente fascinante). Esta questão é aprofundada num diálogo entre Sartorius e Kelvin, em que o primeiro reitera que dever-se-ia fazer uma autópsia a Hari, algo que Kris se opõem abertamente. “Seria mais humano fazer-lhe uma autópsia do que aos coelhos na Terra” afirma Sartorius. Ela sente dor e isso é o que mais interessa a Kris. Não seria o mesmo que desintegrar uma máquina. É uma luta entre a razão e a emoção. Sartorius sabe como são criados estes seres no planeta e Kris sabe o que está a ver. Para esta Hari é terrível quando finalmente percebe que não é quem pensa que é. Quando percebe que não é ninguém, mas sim o produto de memórias. Que terrível existência. Isto faz com que Kris se veja obrigado a explicar as circunstâncias que levaram ao suicídio da sua mulher, algo que ele próprio não queria reviver pois esta “ilusão” (que como boa dicotomia não deixa de ser real) fazia-o retornar aos melhores momentos da sua vida, ainda que não fossem genuínos.


Todas estas noções de existência e o desespero às quais elas lidam são interrompidas por uma sequência belíssima. Durante trinta segundos, a gravidade da estação será nula. Subitamente, Hari e Kris começam a flutuar tal como os objetos à sua volta. Parece um truque de magia, um lindíssimo truque de magia em que o tempo para e de repente, todas aquelas discussões se tornam numa mera futilidade e a única coisa que realmente importa é o sentimento. É esta paixão que Hari e Kris partilham. Kris ama as memórias que tem de Hari e ela também, visto ser um produto das suas memórias, os cortes que mostram o mar em Solaris relembram-nos do constante efeito que o planeta tem. Esta cena termina de uma forma chocante revelando que esta Hari se suicidou. Não conseguiu lidar com o facto de não ser alguém semelhante a outros, de ser um produto. Mas Kris não consegue afastar-se dela, voltou a ter algo que lhe permitia ter “cor” na sua vida e não consegue aceitar a realidade, que Hari não pode voltar, que quem quer que seja que lhe apareça à frente que não será Hari que ele em tempos amou. Muito tempo depois, Hari desaparece e todos os visitantes acabaram por desaparecer quando as ondas cerebrais de Kelvin foram enviadas para Solaris, como se o planeta tivesse percebido o seu sofrimento, entretanto, começaram a formar-se ilhas em Solaris. Terminada a missão e este sofrimento todo, Kris Kelvin retorna à Terra. As mesmas imagens de plantas que parecem movimentar-se debaixo de água aparecem, mas desta vez, têm um significado diferente. Como se agora fosse mais doloroso olhar para elas, por tudo o que aprendemos sobre Kris. As cores outonais desapareceram e agora o frio é o que domina a casa de campo. Kris está feliz por voltar a casa e por voltar a ver o seu pai. Mas o ambiente é demasiado sombrio. À medida que nos vamos afastando da casa, começamos a perceber que Kris não voltou à Terra. Ele está em Solaris. Terá sido uma escolha sua? Acredito que sim, pois ele não estava preparado para deixar Hari e então criou aquilo que mais conforto lhe trazia, a sua casa e seu pai, tudo por uma chance de voltar a estar com ela. Não cresceu, apenas regrediu. Tudo porque ele ainda não conseguiu aceitar que ela morreu e que é tempo de avançar.

Manuel Fernandes

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