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Hiroshima, Meu Amor: Ela e Ele



À primeira vista, “Hiroshima, Meu Amor” pode ser confundido com um filme romântico. Imediatamente após os créditos iniciais, vislumbramos dois amantes que se tornam num só com um simples abraço. Parecem estar cobertos de algo, talvez cinza e há um corte que nos transporta para uma imagem semelhante, mas agora apenas composta por dois corpos, já livres de quaisquer impurezas. Estas duas imagens levantam questões importantes. Passam-se no mesmo momento? Os amantes da primeira imagem são os mesmo da segunda? Qual a sua relação? E é aí que os protagonistas falam sobre os acontecimentos de Hiroxima. “Tu não viste nada em Hiroxima. Nada.” E a resposta? “Eu vi tudo.” Começa uma sequência composta por imagens de Hiroxima e filmagens de arquivo, às quais se junta narração com um certo teor poético. De um lado, Ela afirma que viu tudo e enumera todos os elementos de que se recorda. Vemos a cidade de uma forma voyeurística, como se estivéssemos lá e assistimos ao tom melancólico que nela existe. Já Ele, responde que Ela não viu nada. As imagens são mais violentas agora. Vemos os destroços deixados pela bomba atómica. Vemos as pessoas que sofreram com o ataque, agora mutiladas e desfiguradas. Vemos as crianças que nasceram de um mundo abalado pela radiação nuclear. “Eu sempre chorei o destino de Hiroxima. Sempre.” Diz Ela. “Não. O que havia lá para chorares?” retorque Ele. O filme adota esta estrutura de confronto, em que as memórias de um e do outro vão revelando o passado de cada e como esses momentos tiveram impacto nas suas presentes vidas. Não é um filme sobre um romance internacional, mas sim cinema sobre memórias dolorosas.


Ela e Ele são interpretados pelos talentosos Emmanuelle Riva e Eiji Okada. Ela traz encanto com seus olhos carinhosos e a imensa sensibilidade da sua atuação que nos consegue levar ao extremo da tristeza e à mais intensa felicidade. Ele traz um estoicismo aparentemente inabalável com breves instantes de sorrisos sinceros. Alain Resnais, que já mostrara a sua capacidade em inúmeras curtas documentais, (entre as quais, a famosíssima “Nuit et brouillard “), juntou uma equipa de excelência para “Hiroxima, Meu Amor”, sendo reconhecíveis os nomes de Marguerite Duras e Georges Delarue. Marguerite Duras, que também gozou de uma prolífica carreira como realizadora, escreveu diálogos para o filme, e o seu estilo poético é facilmente cognoscível, relembrando os diálogos de filmes por ela realizados como “India Song” ou “Baxter, Vera Baxter”. Já o famoso compositor Delerue, frequente colaborador de François Truffaut, trouxe as suas proezas musicais com peças de tom taciturno e outras mais desconcertantes, perfeitamente adequadas para este filme.


Entre memórias do passado e os eventos do presente, assistimos à destruição que a II Guerra Mundial teve em dois pontos distintos do mundo. Ela representa Nevers, cidade francesa que fora ocupada pelos alemães, perdendo o seu orgulho no processo. Ele representa Hiroxima, uma cidade que representa uma nação que teve de renascer da carnificina e dos sentimentos de humilhação que advieram com a derrota. Aquilo que associamos a cada cidade são também as chagas de duas pessoas que tentam existir, carregando com elas as lembranças penosas de um passado não tão distante que marcou as gerações que nele viveram e as que sofreram com as suas consequências. É por isso, um filme antiguerra, apesar de não ser conhecido como tal. Nele não figuram imagens de combates decorridos durante a II Guerra Mundial, de homens em uniformes militares ou de políticos exercendo as suas funções. Em vez, temos dois amantes, numa conversa profundamente íntima sobre as suas vidas e sobre as cidades de Hiroxima e Nevers. Nunca são proferidas quaisquer palavras sobre o quão terríveis foram os dias de combate, apenas Ele refere que combateu no exército japonês, mas que não fora destacado para Hiroxima, a cidade dos sonhos destroçados. O que nos é mostrado, de uma forma essencialmente visual (o maior poder do cinema), são as consequências deste episódio sangrento da Humanidade. Primeiro a um grande nível, a destruição total de Hiroxima. Finalmente a uma escala minúscula, a individual.



Inicialmente, eles são a imagem idílica da paixão. Ela, adornada por um belíssimo robe, explora a cidade japonesa com os seus olhos, apoiando-se na varando do seu hotel. Ele, está deitado na cama, e as pequenas interações revelam o carinho enorme que têm um pelo outro. Ela é atriz, vive da subjetividade do mundo e da beleza da arte. Ele é arquiteto, vive da criatividade objetiva e da precisão geométrica. Como duas peças de puzzles diferentes, parecem encaixar na perfeição. No entanto, os elementos exteriores olham com desdém para a relação entre duas pessoas de locais tão diferente e talvez antagónicos tendo em conta os eventos mundiais. E esta dicotomia vai-se aprofundando à medida que percebemos aquilo que os atormenta.


Ela apaixonara-se por um soldado alemão durante a Guerra. Planearam fugir juntos, aquelas loucuras de jovens apaixonados. Mas ele foi assassinado no dia da libertação de Nevers e Ela tornou-se na vergonha dos seus conterrâneos. Foi obrigado a esconder-se, passou fome e sofrera como um animal violentado por simplesmente existir. Quando conseguiu recuperar alguma da sua saúde, fugiu para Paris, levando com ela este trauma. Ele, perdeu toda a sua família, no dia em que Hiroxima foi bombardeada, e durante estes anos todos, a culpa de não ter estado lá para os defender, consumiu-o lentamente. Apesar disso, acabou por se casar.


As tamanhas distinções e o facto de Ela ter de retornar a Paris, põem fim às noites de paixão e dias de amor. Ele pede-lhe que fique em Hiroxima, e gozem de uma fantasia magnífica na qual estão para sempre juntos. Mas ela tem uma família, a qual anseia por revê-la e ele tem uma mulher, tal situação seria impossível. É uma relação que estava destinado a terminar tragicamente, pois não há maior tragédia que o final do amor. E no final, esta história de anonimato começa a ganhar alguma identidade. Ela chama-o de Hiroxima, Ele chama-a de Nevers, pois não há melhor personificação desses locais e desses espíritos que estes dois amantes. Tão perfeitos um para o outro, tão destruídos um como o outro, movidos por um sentimento maior que eles mesmos, não conseguem separar-se, apesar de o tempo assim o pedir.


“Hiroshima, Meu Amor” foi um dos filmes que colocou a Nouvelle Vague na boca do cinema mundial. A sua estrutura narrativa, repleta de flashbacks que intercalam o enredo principal, foi um dos pormenores que mais chamou a atenção de outros cineastas. E também se pode falar de perfeição no que se refere à cinematografia do filme. A montagem é usada de uma forma brilhante, servindo como forma de comparação entre as duas cidades, e entre os dois protagonistas, com cortes sucessivos que evidenciam as diferenças e semelhanças de ambos os meios e pessoas. A sobreposição de imagens é outra técnica usada de uma forma excelente para criar a antítese que é a semelhança díspar. O preto e branco eleva o filme, usando sombras para esconder certos elementos que lentamente são revelados, e criando imagens delicadas e lindíssimas. Os movimentos da câmara podem ser pequenos e quase impercetíveis, podem ser menos subtis, mas sempre nos dão a noção de que a câmara se desloca para o local exato onde deveria estar. Não há uma única imagem que não seja visualmente fascinante ou repleta de emoção. Trata-se de um dos filmes essenciais do cinema, menos não se poderia esperar.

Manuel Fernandes

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