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Malcolm & Marie: Uma Reflexão Obrigatória Sobre Amor e Cinema



O novo filme da Netflix foi totalmente gravado durante a pandemia, com atores e membros da produção em isolamento. Falo de “Malcolm & Marie”, protagonizado exclusivamente por Zendaya e John David Washington, e realizado por Sam Levinson (escritor de Euphoria). Este projeto chamou-me logo à atenção por vários fatores: pelas condições em que foi produzido, por apenas possuir dois atores no ecrã e da narrativa se passar num curto espaço de tempo. De forma resumida temos Malcolm e Marie, um casal de namorados, que chegam a casa depois da estreia do filme realizado por Malcolm. Percebe-se rapidamente que Marie esconde algo e que o vai revelar a seu tempo, e Malcolm foi persistente desde o início em descobrir o catalisador que provocou aquele estado triste e abatido da sua amada. Sinto que não faz sentido abordar os motivos principais que motivaram as discussões entre ambos, para que possam ter uma experiência genuína como a minha, mas quero abordar alguns pontos que merecerem ser elevados. Antes de me dedicar a isso, quero realçar que este tipo de filmes, em que a ação decorre durante horas específicas e contínuas das vidas das personagens, ou seja, no máximo dos máximos passa-se um dia, possuem as suas desvantagens obviamente (mas também há vantagens!). Um exemplo bastante visível disso é numa possível comparação do filme “1917” com qualquer filme de guerra habitual. Em “1917” a ação decorre no espaço temporal de um dia (mais ou menos), enquanto que a generalidade dos filmes de guerra não segue esse alinhamento e obviamente que são capazes de explorar mais elementos. No fundo, este tipo de abordagem carece de contexto ou de outros pontos que o espectador gostaria de ver abordados. Ainda assim, este filme é capaz de nos oferecer o contexto e o enquadramento das duas personagens com base no diálogo entre ambos, apenas temos de colocar a nossa imaginação a trabalhar para tentarmos visualizar aquilo que o filme não nos mostra. Portanto, sermos presenteados com uma história que se passa no decorrer de poucas horas pode não ser para alguns o formato ideal, mas acredito que o propósito principal seja explorar elementos que num “filme normal” podiam passar despercebidos. Neste caso refiro-me às verdadeiras raízes que motivam discussões entre um casal e a maneira como ambos lidam com isso no momento, sem esquecer as vivências passadas.


Esta longa metragem aposta no desenvolvimento das personagens através da ação e aborda as divergências do casal. O diretor pretende que o público se ligue aos protagonistas de uma maneira afetiva, e para isso criou momentos de “pausa” entre as principais trocas de argumentos do casal. Esses segmentos servem para refletir aquilo que vimos, pensar em que lado estará a razão e tentar adivinhar o tema da próxima conversa. Em outros termos, o espectador quase que é literalmente convidado a pensar de forma sistemática ao longo filme. Uma ótima maneira de estimular e de manter a atenção de quem vê. Considero também muito inteligente o explorar do lado conflituoso de um casal, pois pode ser o caminho mais entusiasmante em termos cinematográficos para entender porque é que aquelas pessoas decidiram viver juntos, como é que lidam com essa convivência e o que está na base do amor entre ambos.


Como já perceberam a narrativa decorre numa noite que supostamente seria feliz, já que o Malcolm estreou um filme de grande sucesso. Mas rapidamente se percebe que existem gatilhos para que cada um liberte frustrações acumuladas que nunca estiveram próximas de serem verbalizadas. Nesse âmbito, a própria narrativa demonstra habilidade em não soltar tudo de uma vez para o ecrã, e fá-lo através de uma compartimentação das explosões emocionais em segmentos separados. Na prática, o ponto de vista que um dos dois apresenta vai possuir mais força do que o do outro, até que aquele que está a ouvir absorva o impacto dessas palavras juntamente com uma preparação para contra-argumentar logo de seguida, repetindo-se isto sucessivamente. E é nesta sequência de desabafos que percebemos a origem da relação, como é que eles se sentem com eles próprios e com a pessoa que têm à frente, e até se entende as motivações e inspirações que levaram à produção do filme de Malcolm. Essa sua obra funciona como uma mesa onde ambos expõem as suas ideias, e quando abordam o filme quase que conseguimos ver certas cenas através das explicações de ambos. Na verdade, por momentos somos capazes de imaginar um filme que se encontra inserido dentro daquele que estamos a ver.


Uma das cenas que mais me marcou foi quando Malcolm recebe a primeira crítica ao seu filme e ocupa muitos minutos num monólogo extraordinário acerca do que deve ser e do que não deve ser o cinema. Consegue tocar em pontos agudos sobre a criação de um filme, das razões que levam a um realizador a produzir um conteúdo específico, dos porquês de certa cena ser filmada de determinada maneira, e de como um filme deve ser construído com o propósito de o espectador sentir a tragédia da história. Esta cena revela que o filme é muito mais para além de um desentendimento amoroso, é um filme sobre amor, cinema, respeito, passado, futuro e da vida. O realizador ao colocar esses temas em análise obriga-nos também a refletir qual é o seu propósito em fazer “Malcolm & Marie” naquele estilo.


No fundo, este filme é muito transparente no âmbito em que rapidamente “somos sentados” num lugar repleto de ideias, referências à vida real e sentimentos. É impossível não estar constantemente a pensar acerca do que estamos a ver. Óbvio que esta fluidez na passagem de estímulos para o espectador pensar só é possível graças às grandiosas prestações dos atores, que souberam envergar os principais traumas dos passados das suas personagens, em determinados momentos propícios à construção do contexto da história. Não vejo maneira de alguém ficar indiferente a este filme, tanto que digo que merece nomeações a prémios. Uma obra que não deve ser esquecida pois aborda muito mais do que aquilo que pensamos quando vemos as primeiras imagens.


Diogo Ribeiro

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