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Mank: David Fincher Reinventado

Atualizado: 16 de mar. de 2021



Como produtora de cinema, a Netflix tem sido uma forma de escape para grandes realizadores realizarem projetos que só seriam possíveis com um grande orçamento e total liberdade artística, o chamado final cut. Em 2018, Alfonso Cuarón realizou o filme íntimo semiautobiográfico “Roma”, em 2019, Martin Scorsese pôde finalmente realizar “O Irlandês”, um projeto que começou a ser contemplado nos anos 80. Chegou a vez de David Fincher fugir dos seus outros trabalhos como “Fight Club”, “A Rede Social”, “Em Parte Incerta” ou a série “Mindhunter” e fazer algo que refletia o seu amor pelo cinema clássico. O projeto ganha outra camada de intimidade, pois o guião foi escrito por Jack Fincher, seu pai, que faleceu em 2003, tendo escrito o guião anos antes, mas só agora é que o projeto ganhou vida.


Tal e qual um guião para cinema, o filme dá-nos as indicações dos locais e do tempo. Estamos em 1940, altura em que Herman J. Mankiewicz foi contactado por um miúdo de 25 anos, conhecido na rádio, de nome Orson Welles, para escrever o guião de um filme para a RKO Pictures. A empresa deu-lhe completa liberdade para fazer tudo o que lhe apetecesse e Welles viu em Mank, o homem perfeito para o auxiliar neste projeto. Também somos presenteados com flashbacks que nos dão informação sobre o homem que foi Herman J. Mankiewicz e como a sua vida pessoal, a situação política de Hollywood nos anos 30, e a luxúria e excessos da época, contribuíram para a criação artística do guião. Na verdade, o filme é menos sobre o guião, mas mais sobre Herman Mankiewicz, seguindo temas semelhantes a “Citizen Kane” de Orson Welles. De certa forma, é o “Citizen Kane” à maneira de David Fincher. No entanto, para evitar spoilers, afastar-me-ei do enredo. O tema de quem é realmente responsável pelo guião de “Citizen Kane” é largamente disputado. Apesar da representação negativa de Orson Welles no filme, conhecendo os outros trabalhos de Welles e entrevistas, quer-me parecer que David Fincher tomou demasiada liberdade para o representar de uma maneira negativa, algo que poderá não corresponder inteiramente à verdade. Mas não devemos procurar a verdade absoluta no cinema, tal como as histórias “reais” dos irmãos Coen, os filmes são fruto da imaginação artística e não da forma como é captada a realidade.


A cinematografia é sem dúvida o que mais me espantou em todo o filme, fez-me desejar que este filme tivesse estreado numa sala de cinema. Muitos filmes recentes usam o preto e branco brilhantemente, como o já mencionado “Roma”, ou “O Farol” de Robert Eggers ou “Ida” de Pawel Pawlikowski. “Mank” tem a qualidade esperada de se assemelhar a um filme dos anos 40, com muita influência de Orson Welles no seu estilo, e simultaneamente ter a qualidade de um filme de 2020, como se numa imagem só conseguíssemos identificar duas épocas distintas do cinema, não por causa do guarda-roupa ou cenários, mas pela forma como está filmado e a forma como foi visualmente captado. E tecnicamente é brilhante. A montagem é um ponto bastante usada não como uma simples forma de avançar no enredo, mas sim de oferecer dinâmica ao filme. Uma sequência em particular (que não irei revelar por apreço aos queridos leitores) usa cortes rápidos, justaposições de imagem, e vários elementos que vão de um lado para o outro, tal e qual como em “Metrópolis” de Fritz Lang, criando um efeito assustador que nos força a entrar na psique do protagonista. E mesmo o som, que é algo que costuma ser ignorado pelas audiências, neste filme não será certamente, pois da mesma forma como os filmes dos anos 30 têm aquele som característico, esse mesmo efeito é captado no filme. Sempre que ouvia a voz de Gary Oldman, sentia-me maravilhado porque dava a sensação de que ele fora transportado temporalmente e estava a ouvi-lo através de uma cápsula do tempo.


E já que falei de Gary Oldman, porque não introduzir as atuações, agora? Começando por Gary Oldman, e não dizendo muito, pois dele não se esperava menos do que aquilo que ele trouxe ao ecrã. Ele torna-se em Herman J. Mankiewicz, fala como ele, age como ele, resolve o conflito com carisma e discursos rápidos com a facilidade que todos desejamos ter quando nos encontramos em discussões. A grande surpresa vem da parte de Amanda Seyfried, uma atriz reconhecida pelos seus papéis em “Giras e Terríveis” ou “Mamma Mia!”, onde a sua beleza era um foco maior do que as suas capacidades, e que tentou diversificar a forma como o público a vê em filmes com personagens mais arriscadas, encontrou aqui o seu melhor papel até à data. Sempre que ela está num filme, como em “Ted 2”, “Pais e Filhas”, ou “Enquanto Somos Jovens” mantém sempre uma certa qualidade que nos relembra que estamos a ver a Amanda Seyfried num certo papel. Em “Mank”, ela desaparece completamente e à nossa frente está somente Marion Davies. Os olhos grandes que se assemelham a porcelana são os de Amanda Seyfried, mas a espontaneidade, carisma e determinação do discurso são parte da personagem Marion Davies. Não me surpreenderia se daqui adviesse uma nomeação a melhor atriz secundária. Charles Dance também tem os seus momentos de glória no filme, e dá uma outra camada ao filme com a sua voz firme e vontade de explorar as loucuras da época.


Terminando com a escrita, esta será o elemento frustrante para as audiências. Jack Fincher escreveu um guião belo, com frases dignas de estarem num romance. Quer-me parecer que ele seria um fã de Groucho Marx, não tivessem sido feitas tantas referências ao famoso comediante. E também, bastante apreço pela década em que o filme decorre, com bastante conhecimento pela situação política e pelas modas da altura. E isto pode ser um grande problema para os fãs de David Fincher e para quem vê filmes de uma forma bastante casual. Tal como um grande livro, a escrita obriga-nos a estar atentos, a esmiuçar o vocabulário, a perceber a dinâmica, ritmo e tudo aquilo que compõe os seus elementos. Pode tornar-se difícil e desafiante, algo que para quem tenha gosto por literatura e cinema vai apreciar e querer perceber, no entanto, haverá quem se possa sentir desanimado, especialmente para quem tem grande gosto pelo cinema rápido, cru e com muito estilo ao qual David Fincher nos habituou. Algumas cenas incluem extensos diálogos, ditos de uma forma rápida, quase como um combate intelectual da palavra em que o mais rápido e mordaz ganhará. Apesar de estas serem alguma das qualidades de “A Rede Social”, e em ambos os filmes, o diálogo ser a forma perfeita de resolver os puzzles que são Mark Zuckerberg e Herman J. Makiewicz, este aspeto é feito de uma forma totalmente diferente em ambos os filmes. De certa forma, é desafiante ver “Mank”, algo que me incitará a rever o filme. Mas, a verdade é que os filmes foram feitos para serem vistos e revistos, e foi desta forma que David Fincher quis concluir este projeto.


Que dizer mais? Talvez que esperava apaixonar-me por este filme e decidir prontamente que seria o melhor filme de 2020. Não o posso dizer, porém, devo dizer que gostei bastante dele, pelo desafio que é vê-lo e pelo quão belo é, visualmente falando. Será um filme para os fãs de David Fincher? É certo que não. Para os cinéfilos? Muito provavelmente. Para o próprio David Fincher? Sem dúvida alguma. Mas é isso que “Mank” nos quer mostrar, que na arte, vemos a expressão de uma pessoa. Ver a arte de alguém é perceber quem é essa pessoa, e em “Mank”, isso foi feito de uma forma lindíssima… Difícil, mas lindíssima.

Manuel Fernandes

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