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Marriage Story: A Segunda Parte do Amor



Atualmente, existe um grande debate à volta das plataformas de streaming e se estas irão derrubar a experiência cinemática numa sala de cinema. Um debate semelhante ao que surgiu há décadas com o aparecimento da televisão. E em época de pandemia, é óbvio quem se está a tornar no vencedor. Não quis com isto acender briga alguma (apesar de ser defensor de que nada substitui uma sala de cinema), mas sim falar do grande aspeto positivo que a plataforma Netflix trouxe, o financiamento necessário para que os autores possam criar as suas obras com total liberdade artística e sem passar pelas exigências (e muitas vezes cortes, algo que fez sofrer imenso Orson Welles) dos grandes estúdios que até então, pareciam ser os únicos capazes de financiar estes artista com ideias fora do vulgar que assustam as audiências.


Noah Baumbach já se tinha estabelecido como uma das grandes vozes do cinema indie. Trata-se de um realizador que procura retratar pedaços da vida sem esquecer os momentos constrangedores e mais infelizes que andam de mãos dadas com aqueles que nos lembramos com maior carinho. E não tinha passado despercebido nos meios mais comerciais, sendo nomeado para um óscar de argumento original por “A Lula e a Baleia”. “Frances Ha” também gozou de imenso sucesso, mas foi “Marriage Story” que lhe trouxe maior reconhecimento na sua carreira.


“Marriage Story” inicia-se como a lembrança daquilo que já foi. Os protagonistas escreveram aquilo que de melhor recordavam dos seus parceiros, numa tentativa de reacender aquela chama que se mantivera acesa tantos anos. Todos aqueles que passaram pelo final de uma relação que valorizavam, vão relembrar esses mesmos bons momentos e questionar como terão chegado ao ponto em que se encontram agora se tudo para trás foi tão bom. Nas muitas encruzilhadas da nossa vida, conseguimos destacar imensas delas que nos fizeram sentir completamente presos pela simples razão de não vermos um trajeto bem definido que nos tenha levado àquele ponto desagradável. Mais que a situação, o que magoa é a frustração que a acompanha. Uma total incompreensão de um mundo que parecia tão certo.


E assim, vamos alternando entre Nicole e Charlie. O efeito é fenomenal pois, toda a raiva que direcionamos para uma personagem, é tornada em empatia no momento seguinte. Aquele que nos parecia ser o mais ponderado face ao oposto mais raivoso, sofre uma viragem de 180º por passarmos a ver o mundo através de outros olhos. E à medida que vamos descobrindo as falhas que Nicole procurou ignorar em Charlie, em prol da sua carreira e do casamento, vamos também acumulando as partes conflituosas que ela projeta nele. Algo que se resume ao já gasto “Ninguém é perfeito” (que Billy Wilder brilhantemente usou em “Quanto Mais Quente Melhor”), e que merece algum esclarecimento porque aos nossos olhos, existem pessoas perfeitas, “eu”. Dificilmente, pelo menos alguém com total função das suas faculdades, irá encontrar outra pessoa tão perfeita no mundo quanto nós mesmos, apesar de não ser algo totalmente evidente e que definitivamente necessita de ser lido de uma forma não absoluta. Não é algo que vem de um narcisismo desmesurado e arrogante, mas sim da nossa reação natural ao mundo, pois, apesar de todos os defeitos que conseguimos apontar a nós mesmos, apesar de tudo aquilo que sacrificamos por aqueles que amamos e apesar de idolatrarmos pessoas que colocamos em pedestais, o herói da narrativa que é a nossa vida continua a ser “eu”, de outra maneira não poderia ser. Podemos comparar uma relação a uma peça de piano polifónica, em que cada mão obtém o comando em partes alternadas, ou por vezes, simultâneas, não havendo uma mão que perca a sua “voz” nem que obrigue a outra a perder algum do seu direito ao holofote. Por melhor que a sequência inicial nos pintasse a forma como cada um vê o outro, algo tornou em mim evidente que havia uma dominância de Charlie face a Nicole e uma passividade dela, aceitando que as grandes decisões fossem tomadas de acordo com o que melhor o satisfizessem. Não porque o Charlie é uma pessoa má que não quer saber dos sentimentos dos outros, nem porque a Nicole se deixava atravessar por um autocarro cheio de fúria do marido. Algo bastante importante nesta história é o facto de nenhum dos dois ser uma pessoa que possamos definir simplesmente como cruel. Até posso afirmar que são duas personagens bastante bem-ponderadas e com genuíno carinho pelo outro. Mas o diálogo da Nicole, permite perceber as várias promessas que Charlie lhe fez e que nunca cumpriu: “Vamos viver para Los Angeles, mas agora não”; “Um dia vais ser a encenadora de uma das peças, mas por agora, é melhor que seja eu”. E com o fim da relação, vem esta necessidade de reaver o controlo perdido no passado. É nesse sentido que Nicole, contrariamente ao inicialmente combinado, decide que irá usar um advogado para esta mediação. Tal como Charlie, nós mesmos nos sentimos magoados com esta situação. Notamos no quanto ainda gostam um do outro, e só desejamos que consigam ultrapassar este problema, mas este somente se irá resolver com o divórcio, e até lá, ainda haverá muita desordem (já para não falar, que no meio, têm um filho que será que adaptar ao novo cenário).




Passamos para Charlie e vemos as dificuldades tremendas que ele tem de passar para poder conciliar o seu emprego em Nova Iorque, o divórcio em Los Angeles e manter ao máximo uma vida normal para Henry, o filho. Até para Charlie, encontrar um advogado provou ser tremendamente difícil. Nada lhe corre bem neste momento e parece que entrou numa batalha com Nicole para a qual vai ter de trazer as suas melhores armas. Esta ideia não o demove, mesmo quando avisado por Bert, o seu advogado, que será melhor fazer concessões do que prolongar e obter resultados catastróficos. Mais que ele mesmo, está a relação com o seu filho em jogo. A partir daí, torna-se uma batalha que culmina na assustadora discussão que é o clímax deste filme. O que começa como uma conversa ponderada, evolui para pequenos e mesquinhos ataques pessoais, passando pela revelação de podres como a traição de Charlie (sem admissão de culpa) e acabando com a violência verbal. É o momento em que os nossos corações quebram. Uns por pena, outros por nos vermos a nós mesmos em partes da discussão (espero eu que não na totalidade da mesma).


No final, é impossível não sentir imensa empatia para com Charlie. Ele torna-se a vítima desta situação e passa a estar numa posição à qual não estava habituado, a de não exercer controlo sobre a sua própria vida. Talvez se víssemos tudo da perspetiva da Nicole, haveria bastante prazer em ver como ela conseguiu sair “vencedora” (à primeira vista) deste conflito. Mas Baumbach não quis isso, e por isso é que nos sentimos mais divididos quando analisamos a fundo o carácter e motivação de ambas as personagens. Realmente, não há mesmo quem saia vitorioso deste divórcio, apenas duas pessoas que caíram do seu melhor e usaram tudo à sua volta para não sair por baixo. Toda a dinâmica das suas vidas foi perdida e vão ter de se adaptar a viver sem aquela pessoa que estava lá nos bons e maus momentos. Por vezes, ser a pessoa certa não é suficiente. Acompanhando toda a dinâmica de teatro que estrutura o filme (com o cair do pano em novas cenas e ação conduzida essencialmente pelo diálogo, por exemplo), segue-se um momento completamente dissociado dos anteriores com um toque surrealista, em que Charlie, enquanto conversava com seus amigos e discutia o quanto perdeu com o divórcio, subitamente se levante e começa a cantar “Being Alive” do musical “Company”. Originalmente, a música era cantada por um personagem que refletia sobre a relação de amigos seus e concluía que a vida é melhor quando acompanhado, a antítese perfeita para Charlie, que naquele momento, via o seu ex-casamento como a causa da sua atual desventura e a ironia torna-se o único meio de expressão naquele momento.


Como referi, Noah Baumbach pega em pedaços da vida e por isso, esta história não acaba, e torna-se numa narrativa aberta. Ainda há mais para além do que nós vimos, e mesmo quando eles tomam caminhos diferente no final, sabemos que nada está delineado naquele momento. Pegando mais uma vez nos momentos finais, reparamos na metáfora pouco subtil que é ver Nicole, a sua mãe, o seu novo namorado e Henry vestidos como os membros dos Beatles, e Charlie vestido como um fantasma, sinónimo do passado e do estranho. Na casa em que o vimos receber pela primeira vez os documentos do divórcio, onde antes ele andava livremente, e podia simplesmente pegar em comida do frigorífico sem que isto suscitasse alguma surpresa nos demais, ele agora nem aparecia nos retratos. Mas não há como não encontrar conforto no final, ao perceber que mesmo nos piores momentos, nada se resume à vilania e podemos encontrar nos nossos “adversários” a compaixão que precisamos. Marriage Story merece ser revisto, mesmo que nos relembre uma parte mais melancólica de nós mesmos, pois nele vemos retalhos das nossas próprias vidas e encontramos conforto na simples ideia de que não somos os únicos.




Manuel Fernandes

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