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Mulherzinhas: A Expressão Artística



“Mulherzinhas” é a mais famosa obra literária de Louise May Alcott e o filme de Greta Gerwig foi a sétima adaptação cinemática do aclamado livro. Outras adaptações contaram com grandes atrizes, tais como Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor ou Winona Ryder. Mas a atriz que seguiu o percurso da realização trouxe uma nova abordagem artística à forma como esta clássica história é apresentada. Apesar de ser na segunda metade do século XIX que a trama se desenrola, há elementos que talvez não são os mais próprios para a época. Desde os longos cabelos soltos de Jo March ou de certas peças de vestuário que não existiam na altura, imensos elementos serão mais modernos do que a forma como historicamente deveriam ser representados. Ou o facto de Florence Pugh representar uma rapariga de 12 anos e uma jovem mulher adulta no mesmo filme. Mas, “Mulherzinhas” não se trata de ser realista ou de mostrar o mundo como exatamente é. Uma história depende sempre de quem a conta. A perspetiva do narrador é talvez o mais importante elemento de todas os contos, pois pode moldar completamente os restantes elementos e a forma como serão vistos pelo público (sendo que a forma como o próprio público perceciona o que ouviu/leu/viu permite outra moldagem). E Greta Gerwig trocou a veracidade histórica por expressão artística. Talvez este seja um dos mais importantes temas do filme.


Superficialmente falando, “Mulherzinhas” é extraordinário pela sua cinematografia, atuações, realização, guião, entre outros aspetos mais técnicos do cinema. As imagens são visualmente espetaculares, com uma palete de cores sensacional que mistura tons frios mais invulgares, criando uma sensação de um mundo escuro e simultaneamente cheio de vida. Paisagens gélidas, bailados impressionantes ou até íntimas cenas familiares são iluminadas pelo olhar cuidadoso de Greta Gerwig que permitiu à câmara mover-se, em vez de se manter estática a olhar para os seus sujeitos.


Jo March é uma das mais reconhecíveis heroínas da literatura mundial. Juntamente com as suas três irmãs forma uma das mais divertidas trupes familiares alguma vez juntadas no cinema. Têm o tipo de relação que fará qualquer pessoa sorrir, por simplesmente serem tão cheias de vida e pitorescas na forma como interagem. Os problemas entre irmãs são os mesmos que todas as pessoas nesta situação terão certamente passado por, e é com esta nostalgia ou reconhecimento que nos sentimos apaixonados por estas personagens. Não há outra palavra senão adorável talvez. É de encher o coração.


Porém, no seu cerne, “Mulherzinhas” de Greta Gerwig é, tal como disse, sobre expressão artística. Sobre representar a forma como pensamos ou vemos o mundo da maneira que mais gostamos. No caso de Louise May Alcott foi na literatura, para Gerwig foi no cinema. Daí a decisão inteligente de dissolver as personagens de Jo March com versão de Louise May Alcott apresentada no filme (ambas interpretadas por Saoirse Ronan). Algo quase impercetível para aqueles que não estão familiarizados com a história ou os factos por trás dela, mas Louise May Alcott está presente na jovem rapariga que luta por conseguir o seu romance publicado, com o menor número de concessões possível. Tal como os grandes escritores, olhou para o mundo à sua volta e deu-lhe o seu toque pessoal. No seu caso, apoderou-se da sua própria vida, das suas irmãs, dos seus pais, e amigos e transpô-los nas folhas para dar ao mundo a sua versão sobre crescer e viver no feminino. Fê-lo através de Jo March que é ela em todo o seu ser, e por isso acaba também por não o ser. A antítese de existir na arte. Já Greta Gerwig pegou nesta adorada obra e na sua autora e fez o mesmo.


Porque é que há cenas tão romantizadas que parecem destoar com o resto do tom do filme? Porque há outras mais pesadas que partem o nosso coração e fazem-nos implorar por uma intervenção divina que magicamente mude o destino destas queridas personagens? Em prol do leitor e das audiências. Infelizmente, a expressão artística acaba por frequentemente ser obscurecida por expectativas que se não forem correspondidas, podem traçar a sua sina. Então, há que ceder em alguns pontos de modo a manter os mais essenciais. No caso de Louise May Alcott, a sua história mudou para poder dar um sorriso parvo a quem a lesse. Para Greta, nada disso aconteceu. Ela pegou nesta história e contou-a à sua maneira, revelou esta triste parte do mundo da arte e ainda para mais, fê-lo com a sua visão única e bela.


Talvez a arte seja muitas vezes desvalorizada. Não faz avançar a medicina, engenharia, economia. A nossa existência em geral. Mas, sem ela, apenas existimos, e que triste mundo será esse. Greta Gerwig diz-nos, portanto, que nos expressemos. Que não comprometamos a nossa visão em prol daquilo que outros queiram. Se o fizermos, não estamos verdadeiramente a expressar-nos e deixamo-nos ficar num estado vegetativo. E está mais presente do que muitas vezes achamos. Não estaria, não fosse a arte tão importante para a Humanidade.


Manuel Fernandes

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