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Napoleão: O Espetáculo do Cinema



Há algo bastante interessante em filmes com durações insólitas. E ainda mais curioso que um filme com minutos de duração, é aquele que nos obriga a ficar várias horas a olhar para a tela, testando a nossa paciência. Um dos meus filmes favoritos da Era do Cinema é um que chegou a ter mais de nove horas de duração, sendo que o melhor restauro que sobreviveu tem, atualmente, cerca de cinco horas e meia. Trata-se de “Napoleão” visto pelos olhos do visionário Abel Gance, responsável pelo igualmente longo “A Roda” de 1923. Estes dois filmes são exemplos do Movimento Impressionista do Cinema Francês, com suas transições rápidas e pictóricas, ângulos de câmara altíssimos e baixíssimos, e, a minha característica preferida, o movimento da câmara.


Quando me comecei a aventurar pelos primórdios do cinema e cheguei à transição entre o cinema mudo e o cinema sonoro, foi quase como reparar numa quebra da evolução artística e uma regressão enorme que só anos mais tarde voltaria a recuperar. O som permitia algo que o cinema mudo fazia com dificuldade, o diálogo (apesar de “A Paixão de Joana D’Arc” se revelar uma exceção desta regra), mas perdeu muita dos feitos que via terem sido explorados na Era Muda. Então ver “Napoleão” fez-me desejar estar numa sala de espetáculo gigantesca com três telas gigantes (tal como existe em imensos quadros, as cenas finais de “Napoleão” são compostas por um tríptico glorioso) com a orquestra a tocar aquele brilhante tema, durante longas horas, com intervalos para discutir as imagens e poder recuperar fôlego para o ato seguinte. Parece dar um significado totalmente diferente ao que é ir ao cinema, era um verdadeiro espetáculo como poder assistir a um concerto de um grande artista internacional.


Há algo de extremamente cativante nesta obra. Evidentemente, é uma versão romantizada da vida do famoso líder francês, desde a sua infância até à idade adulta onde demonstrou clara aptidão para feitos bélicos. E acaba por também não o ser. Não sei se será da música, mas enquanto via o filme tinha a sensação de que a grandeza era possível para todos. No início, um jovem Napoleão vê-se envolvido numa luta de bolas de neve (e devo dizer que da maneira estonteante que Abel Gance a filmou, esta é provavelmente a mais épica luta de bolas de neve) e já há uma certa coragem e capacidade estratégica nesta criança que comanda tropas num pequeno campo de batalha. Este sentimento de liderança é contagiante e progride por todo o filme, não só porque nos parece que Napoleão está a falar connosco, que nós somos o povo e que ele nos incita a lutar por uma vida melhor com justiça, igualdade e fraternidade (aquele clichê mas tinha que o escrever), mas também porque sentimos aquilo pelo que ele está a passar, como se nós próprios fôssemos Napoleão. É como se a águia, simbólica do poder, vitória e orgulho, que tantas vezes se dissolve na face de Napoleão e cria assim uma só entidade, fosse nós mesmos. Como se de repente, eu tivesse asas e me sentisse poderoso, e no final, só estou a ver um filme.


E eu que tinha falado do movimento da câmara, convém explicar o que tem de tão formidável. Não é como a câmara a andar de um lado para o outro fosse algo que nunca tivesse sido feito. Mas Abel Gance quebrou com todos os limites. Desde balançar a câmara por todo um parlamento a abarrotar de gente, a câmara a cavalgar (literalmente a cavalgar, ele colocou-a na sela de cavalos) a toda a velocidade, fazendo-nos sentir cavaleiros que percorrem o caminho ao lado de Napoleão e também quase a voar no meio da espirituosa “batalha” com bolas de neve (não paro de referir esta cena, no entanto, ela abre o filme de uma forma tão espantosa que é difícil esquecê-la). Ela não para quieta quando assim é pedido para dar a noção de envolvência da audiência com a história, mantendo-se imóvel em momentos mais calmos, em que todos ficamos parados a olhar para o Córsego, enquanto ele discursa e diz todas as verdades, e aquilo que é preciso mudar.


Stanley Kubrick disse que nunca foi feito um filme que fizesse jus à vida de Napoleão. Ele próprio planeava fazer um épico de três horas sobre esta personagem histórica, algo que nunca teve a oportunidade de fazer e é um dos mais famosos e desejados filmes nunca feitos (já imaginaram um épico de Stanley Kubrick com Jack Nicholson a fazer de Napoleão e Audrey Hepburn a fazer da sua amada Joséphine? Do homem que sabemos que conseguia fazer trabalhos brilhantes nesse género, como “Spartacus” e “Barry Lyndon), tal como “Dune” de Alejandro Jodorowsky que mesmo não tendo terminado a fase de pré-produção (só faltava conseguir fundos que todos os outros aspetos estavam concluídos para começar a filmagem) foi provavelmente o filme que mais influenciou o género de ficção científica desde “Metrópolis” de Fritz Lang. E talvez este não seja mesmo um bom filme sobre a personagem de Napoleão, mas é um espetáculo de filme sobre valentia, perseverança e paixão pelos ideais.

Manuel Fernandes

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