top of page
Foto do escritorunderscop3

O Apartamento: Como a Comédia nasce da Tristeza



A premissa é simples, C. C. Baxter, C de Calvin e C de Clifford, alcunhado de Buddy, é um dos milhares de trabalhadores de uma companhia de seguros de Nova Iorque. E tal como a maioria dos colegas, no final do seu trabalho, das 9 às 5, vai para casa, aproveitar o resto do dia para repetir a rotina no dia seguinte, e no dia seguinte, e também no dia após esse. Ou assim seria, porque na verdade, Buddy “arrenda” o seu apartamento para que os seus superiores possam ter as suas aventuras extraconjugais. Talvez pela sua necessidade de agradar aos outros ou incapacidade de dizer que não. Quem sabe, um desejo inconscientemente manipulador de alcançar um melhor posto com estes favores se adotarmos uma ideologia mais negra que muito possivelmente não se enquadra neste homem. Continuando, mal a festa (em certos casos, as festas) termina, Buddy pode voltar para o apartamento e agir como se nada tivesse acontecido. Janta sozinho, vê televisão e vai dormir. Uma jornada perfeitamente aborrecida mas confortável. A piada poderia estar numa série de desastres que estas aventuras acabariam por ter no ambiente do prédio, e efetivamente isso acaba por acontecer, mas de uma forma pequena, não é o foco do filme. Acredito que esta é uma comédia brilhante porque aquilo que lhe dá esse estatuto neste género do cinema reside na tristeza do nosso protagonista e nas outras personagens.


Billy Wilder é muitas vezes apelidado de “o melhor argumentista na História do cinema” e muito se deve à riqueza das suas personagens. Tratam-se de pessoas reais e não de panos unidimensionais que, muitas vezes, Hollywood parece gostar de atirar para a frente das audiências, acrescentando uma pitada de sex-appeal e clichês gastos mas que infalivelmente resultam. Como qualquer outra pessoa, estas pessoas têm o seu quê de felicidade e outro tanto de melancolia. Orgulham-se das conquistas e desanimam com os falhanços. Muito facilmente cairiam em estereótipos do cinema: C. C. Baxter poderia ser um simplório com falhanços e tiradas ridículas para nossa diversão; o seu interesse romântico, Fran Kubelik poderia ser uma triste e ingénua mulher com uma propensão para eternos fiascos amorosos; e o chefe, Jeff D. Sheldrake, um malvado vilão cuja única função é provocar o infortúnio dos bons. E é fácil categorizá-los dessa forma e simplesmente ignorar todo o trabalho que Billy Wilder teve para que as ações que estas personagens tomam sejam as aparentemente mais reais. Mas não se consegue fazer isso pois todas elas se fundamentam no mesmo princípio que lhes traz uma profundidade semelhante àqueles que conhecemos - o princípio da tristeza. Buddy torna-se constantemente alvo de si mesmo, algo provocado pela sua necessidade empática de que os outros se sintam sempre bem, aliada a uma crença da constante bondade do mundo (leia-se dos outros). Quando o mesmo não é retribuído, facilmente cai em si mesmo, e inclusivamente nas piores situações o esforço tende para a tentativa de reversão do estado em que se encontra, a infelicidade parece não o abandonar. Já Kubelik acredita numa eterna condição depressiva que ela mesma merece. Algo em si (do seu passado) fê-la acreditar na necessidade de aprovação masculina e envolve-se em relações de baixo nível, rebaixando-se ao papel de amante, crendo que talvez esse estado eventualmente evoluirá para algo que seja mais digno dela ou alguém que ela vê como melhor que ela. Escusado será dizer que o homem com quem se encontra enche-a de esperanças que nunca serão correspondidas. Esse homem, é o último desta linha de pessoas tristes, Sheldrake é o arquétipo daquele que tudo tem e que em nada isso lhe trouxe a invejada felicidade que nós confiamos que os grandes e ricos sejam os santos detentores absolutos, culminando numa violência e ódio para consigo mesmo, que são projetados como exerção de poder sob os outros, quer sejam os seus empregados, quer sejam as pobres mulheres com as quais procura breves momentos de adrenalina para colmatar as falhas na sua vida. O que interesse deste palavreado todo? As personagens desta obra são perseguidas pela melancolia.




Agora prende-se outra pergunta. Como é que isso se relaciona com comédia? A comédia é tradicionalmente a diversão e está associada ao riso. Algo é uma boa comédia se despoletar a gargalhada, se achar tão hilariante que até começo a chorar. Como é que possivelmente, algo recheado de personagens tão infelizes com elementos que pendem para o mal da humanidade ser possivelmente engraçado? Vejamos alguns das sequências que compõem a narrativa. Os sucessos na carreira de Buddy são uma fachada para se tornar no fantoche de Sheldrake quando este necessita do seu apartamento. Fran eventualmente tenta suicidar-se. Buddy que a certa altura se sentia no topo do mundo e a sentia alguma reciprocidade de sentimentos da apaixonante Miss Kubelik, percebe que dela não receberá o mesmo, pois ela está presa a algo abusivo. Parece uma desgraça evidentemente catastrófica! Mas a verdade é que a comédia anda de mãos dadas com a tristeza. E se assim o é, que é ser cómico afinal? Talvez uma simples resposta à adversidade da vida. Quando confrontados com momentos sombrios, uma forma de lidar rapidamente com o que nos atormenta passa pelo riso. Não necessariamente do nosso próprio, mas dos outros. Basta olhar para o mais recente exemplo daquilo que parecia ser o homem mais feliz à face da Terra, Robin Williams. Sempre tão brincalhão e cortês na forma como o fazia, aquele que não desse uma gargalhada ou pelo menos sorrisse seria simplesmente uma personagem da literatura com qualidades ainda mais malignas que as de Lúcifer. E por trás deste homem, escondia-se uma faceta que ainda nos dias de hoje, custa a acreditar. É impossível não ver nele o cânone do dito “palhaço triste”. E não dá para esquecer Charlie Chaplin cujas películas mudas, 100 anos depois, ainda nos põem a sorrir pelo sentimento que transbordam. Ele disse “Eu sempre gostei de andar à chuva, pois assim ninguém vê as minhas lágrimas”. Não é preciso aprofundar. Pôr os outros a rir é obter a aprovação. É de repente, tornar-se na pessoa mais importante da sala. É sentir que aquilo que fizemos foi de uma importância brutal pois naquele momento, por mais curto no tempo que fosse, a palhaçada dita, quer fosse algo patético ou de uma inteligência assombrosa, foi a fonte do mais precioso tesouro que todos procuram por o terem perdido durante o final da sua infância, a trivial felicidade. Talvez seja por isso que muitos decidam não crescer e sejam crianças para toda a vida.


Afastando-me do pessimismo da vida e dos exemplos extremos, a qualidade de atuar de forma cómica pode ser um mecanismo de escape à tristeza sem dúvida, mas a tristeza não é necessariamente uma constante, apenas um aspeto da vida. Dela podem nascer momentos caricatos que nos ajudam a ultrapassá-la. E também podemos ser engraçados sem estarmos profundamente deprimidos! Que isto não seja o discurso de um arauto do mal. Apenas uma compreensão de que um aspeto negativo consegue estar ligado a algo classicamente visto como profundamente positivo. O riso não faz os problemas e preocupações desaparecerem mas ajuda a vê-los de outra perspetiva e possivelmente a criar soluções para estes. Billy Wilder tinha esta noção e pegando em personagens cujas falhas os trouxeram a estes estados que tendemos a repudiar na representação artística, criou uma intemporal, divertida e encantadora trama com tanta personalidade que nossos corações dificilmente conseguem resistir. E não dá para esquecer a forma como termina. Baxter decide que não irá compactuar com a brutalidade das decisões de Sheldrake e despede-se. Já Fran, percebe que, após tudo o que passou quando estava no momento mais baixo da sua vida, acabou por se apaixonar pelo homem com Dois C.’s, um de Calvin e outro de Clifford e se algo nela não mudasse, então ficaria presa para sempre neste ciclo vicioso. É um dos finais mais ternurentos que alguma vez pude ver. É noite de Ano Novo. Ela corre tanto quanto pode para o afamado apartamento. Assim que estão juntos, no agora vazio local que tanto drama criou, iniciam um pequeno jogo de cartas, pelos “velhos tempos”. Ele sorri, ela finge que não está interessada mas os seus olhos mostram tudo o que vai no seu coração. “Cala-te e dá as cartas”, Billy Wilder sabe mesmo como terminar o diálogo. Para os gregos, comédia era todo o teatro com um final feliz, essa noção não foi esquecida.




Manuel Fernandes

18 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page