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O Cristal Encantado: A Era da Resistência – Regresso de Uma Arte Perdida



Quem aprecia a arte das marionetas ou dos efeitos especiais práticos já deve ter ouvido falar de Jim Henson. Um dos mestres na criação de marionetas, mais conhecido pel’ Os Marretas ou a Rua Sésamo, a sua companhia (gerida atualmente pela filha mais velha, Lisa) é responsável por algumas das criaturas mais conhecidas do cinema e televisão, incluindo o Mestre Yoda da saga Star Wars e as Tartarugas Ninja dos filmes da década de 90. No entanto, aquela que eu acho ser a sua maior obra será um filme de 1982, pouco conhecido pelo público em geral, mas que alcançou estatuto de filme de culto: The Dark Crystal, conhecido em Portugal (num daqueles “brilhantes” saltos de lógica das tradutoras) como O Cristal Encantado.


Completamente desprovido de personagens humanas, o filme passa-se no mundo alienígena de Thra, onde os decadentes e hedonísticos Skeksis governam há milhares de anos – perdão, trinos – usando o titular Cristal, outrora o Cristal da Verdade, para prolongar as suas vidas à custa do planeta e escravizando as populações com os mecânicos soldados Garthim. Jen, último da raça Gelfling exterminada pelos Skeksis, é incumbido pelos Místicos de reunir o Cristal com o fragmento há muito tempo partido, reparando-o e ao equilíbrio de Thra, antes da próxima Grande Conjunção dos três sóis. Durante o seu percurso, Jen irá encontrar auxílio da sábia, mas impaciente Aughra, e de Kira, uma rapariga Gelfling criada pelos Podlings que consegue comunicar com os animais.



O filme, embora genérico na história e no protagonista, demonstra uma imensa criatividade na construção do seu mundo, claramente separado do familiar terrestre e no entanto facilmente palpável pelo uso de efeitos práticos e criaturas físicas, e com uma história e cultura própria da qual tocamos apenas a superfície. E o que Jen falta em personalidade, todos os outros personagens compensam, particularmente os Skeksis (quem vir o filme ficará com os gemidos conspiratórios do Chamberlain SkekSil na cabeça por semanas). Apesar do cenário alienígena, é um conto de fadas, mas um conto de fadas negro do estilo original dos Irmãos Grimm, que no meio das maravilhas não poupa à crueldade dos vilões nem o horror dos seus atos, tal como a cena em que o Cientista drena a essência vital de Podlings, capturados para usar como elixir de juventude, tornando-os em escravos sem mente. No entanto, O Cristal Encantado não teve o sucesso esperado e durante anos o mundo de Thra não voltou aos ecrãs, sendo abordado principalmente em livros e novelas gráficas.


Porquê falar deste filme, então? Porque recentemente – em 2019, para ser exato – estreou uma série prequela ao filme, O Cristal Encantado: A Era da Resistência, na plataforma Netflix. Feito tal como o filme maioritariamente com marionetas (surpreendentemente uma exigência da plataforma e não dos criadores, e uma decisão reforçada após uma breve sequência de teste usando uma marioneta Skeksis e um Gelfling por computador), a série passa-se vários anos antes do filme (o número exato é deixado intencionalmente vago). Aughra, encarnação de Thra, fora enganada pelos Skeksis a confiar-lhes o Cristal da Verdade, fonte de toda a vida no planeta, enquanto estudava e percorria o cosmos. No entanto, estes depressa usaram a posição de guardiões do Cristal para governarem Thra e os sete clãs Gelfling que a habitam, enquanto corrompem o Cristal sugando-lhe energia para permanecerem imortais. Mas o Cristal foi maltratado até ao limite e os Skeksis viram-se para uma nova fonte de imortalidade: sugar a essência vital de outras criaturas, começando pelos Gelflings. Ao mesmo tempo, a corrupção do Cristal cria uma energia chamada Escuridão, que envenena o mundo em redor e aumenta a agressividade dos animais. Os principais heróis serão três Gelflings de clãs diferentes: Rian, um guarda Stonewood do Palácio de Cristal que descobre a drenagem de essência e é feito bode expiatório; Deet, uma aldeã Grottan que descobre a Escuridão e é incumbida de avisar a All-Maudra, líder dos Gelfling; e Brea, estudiosa e mais nova das princesas Vapran, que questiona a autoridade dos Skeksis após uma cruel colheita do dízimo. A eles se irão juntar, além de outros Gelflings, Hup, um Podling armado com uma colher de pau que sonha ser paladino; Legado, um construto de pedra com uma mensagem para derrotar os Skeksis; e Aughra, acordada pelo desequilíbrio de Thra e desesperadamente tentando corrigir o seu erro.



Em termos técnicos, a série é fantástica. A tecnologia e manipulação das marionetas claramente evoluiu bastante em quase quarenta décadas, com maior detalhe e flexibilidade e movimentos mais realistas. Os efeitos por computador são mínimos, usados principalmente para reforçar a expressividade dos personagens – uma piscadela aqui, um ligeiro sorriso ali –, acrescentar cenários nas cenas de maior movimento e remover os marioneteiros; mesmo os personagens criados por computador têm como base a luz e os movimentos de marionetas. Como resultado, os personagens e o seu mundo têm uma sensação de peso e luz muito mais realista do que qualquer personagem CGI dos filmes modernos. Uma cena extremamente meta ocorre no episódio sete, onde os eremitas criadores do Legado revelam aos três heróis e Hup a verdadeira origem dos Skeksis e Místicos usando um espetáculo de marionetas: são marionetas de corpo inteiro a manipular marionetas de dedo para uma audiência de marionetas de mão! No entanto, o maior feito técnico é quão facilmente eles são ignorados: até os créditos nos lembrarem dos marioneteiros e atores por trás da sua performance, estas personagens são criaturas vivas, de carne e osso e com a sua própria existência e maneirismos.



Por outro lado, temos a história. Claramente aprendendo com os erros do passado, os protagonistas Gelfling possuem personalidades mais ricas e dinâmicas do que Jen, sem sacrificar a riqueza dos outros personagens. A maturidade e tom sinistro do original mantém-se, se não é amplificada, mas sem cair para a depressão apática, um feito difícil dado que já sabemos qual será o lado vencedor. Apesar de ser uma prequela, pode-se facilmente ver sem conhecimento d’ O Cristal Encantado original; o pior que pode acontecer é não reconhecer algumas alusões a eventos do filme. O casting inclui muitos profissionais de renome e alguns nomes surpreendentes mesmo em papéis curtos, tal como Sigourney Weaver, Mark Hamill, Simon Pegg, Helena Bonham-Carter, Lena Headey e Alicia Vikander. Embora haja algumas sequências mais demoradas que irão aborrecer os mais sedentos de ação (como a rotina matinal de um Podling a abrir o episódio dois, ou os Skeksis a se empanturrarem alarvemente no enésimo banquete), estas ajudam a construir o mundo além da narrativa, mostrando que há vidas e eventos para lá do que nos é mostrado.


Em resumo, O Cristal Encantado: A Era da Resistência é uma excelente narrativa e uma exploração profunda de técnicas há muito abandonadas pelas superproduções em favor do CGI. Por agora a série conta com apenas uma temporada, dependendo do número de audiência para prosseguir. Por mim, espero sinceramente poder seguir as crónicas de Thra e dos seus habitantes, que para mim tornaram-se tão reais como qualquer série de imagem real.



Gabriel Peixoto

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