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O Desconhecido do Norte-Expresso: O Crime Perfeito



Já estamos todos familiarizados com a expressão “O Mestre do Suspense”. Hitchcock era um mestre da arte, mas não era apenas porque conseguia fazer o coração tremer nas suas tensas cenas cujo desfecho é para nós difícil de prever, mesmo tendo já as suas táticas sido imitadas um milhão de vezes, anos mais tarde, mas também por mostrar um brilhantismo nos aspetos técnicos e performativos (dos seus atores, isto do homem que disse “Eu nunca disse que os atores são gado, eu disse que deveriam ser tratados como gado” de uma forma lenta, procurando despoletar o riso da audiência do “The Dick Cavett Show”, escondido o seu próprio sorriso de miúdo no processo.


Vou começar por atravessar-me e dizer de uma forma básica que o filme de que falo é excecional. O tema é bastante macabro, mas para aí já passamos, e Hitch consegue tornar algo que pode ser difícil sequer de falar ou tentar pegar no conceito para uma pequena introdução. Uma das suas obsessões, que era também um medo tremendo, era a morte e a forma como as pessoas poderiam ser assassinadas. E não há nada para ultrapassar os medos como enfrentá-los, e foi isso que o mestre fez, usou o cinema como forma de explorar aquilo que o assustava e transpor o mesmo para audiências que procuram o cinema como fonte de emoções fortes. Reparemos no que Alfred Hitchcock faz para atingir esse efeito. Se compararmos com um filme mais recente de baixo calibre (não é um ataque pessoal ao cinema moderno porque o que não falta são thrillers excelentes a serem produzidos no século XXI), o que este tentaria fazer seria trazer-nos logo para ação. Foi para isso que as pessoas pagaram o bilhete, pois claro. Mas a longo prazo, isso pode não compensar. Hitchcok gosta de demorar algum tempo para colocar todas as peças no jogo e depois começar o ataque. Vejamos mesmo as primeiras imagens. Numa sequência inicial, vemos dois homens a dirigirem-se para um comboio. No entanto, só vemos as pernas deles a dirigirem-se para o dito transporte. Um a dirigir-se pela esquerda, e outro pela direita, quase como um espelho um do outro. Quando voltamos a vê-los, estão na mesma cabine, virados um para o outro. Ele quer-nos dizer que estes personagens tomam percursos que as irão irremediavelmente ligar por muito tempo. A seguir, ele pinta-nos estes dois homens que serão as estrelas. É necessário pintá-los pois ao torná-los em pessoas reais e não apenas no assassino e no herói, perdemos qualquer empatia que viríamos a desenvolver no decorrer da ação e dessa forma, não tão emocionante. Um é Guy Haines, um tenista profissional e outro é o abastado Bruno Antony, por enquanto deixemo-los assim. Eles encontram-se fortuitamente e a conversa leva a uma ideia tétrica da parte de Bruno, ele refere que a melhor maneira de cometer um homicídio seria trocando homicídios com outra pessoa. Essa pessoa mata quem eu me quero ver livre de, e eu faço o mesmo para a outra pessoa, crimes sem motivação e com um álibi. Bruno deseja matar o seu pai, não apenas cortar laços, mesmo matá-lo. Guy deseja divorciar-se da sua atual esposa, que podemos caracterizar como vulgar e promíscua, e casar com Anne Morton, mulher elegante e belíssima, as motivações. E vemos as reações de ambas as personagens. Ao início, Bruno até parecia um homem completamente inocente que se mostrava contente por conhecer um ídolo do desporto, e um bocado trapalhão com as palavras, um homem ordinário. E Guy, um homem educado que tenta manter apenas uma relação cívica entre dois homens que não se conhecem. Mas Bruno é calculista, ele analisa as situações até poder quebrar o verniz que esconde a sua faceta fria à medida que a conversa progride. Guy, como alguém normal, sente repulsa da ideia, mas responde com sarcasmo, pois dificilmente acreditaria que alguém tomasse aquelas atitudes. Bruno é incapaz de sequer entender sarcasmo e toma a resposta de Guy como certa. Daqui já podemos compreender melhor como operam as mentes de cada um destes homens. A de Guy, como a maioria das outras pessoas. Bruno, um bocado mais complexo. Alguma dificuldade em decifrar a linguagem não verbal humana e criar empatia por outros. Até me distanciarei um bocado de Guy por esta mesma razão. Há vários momentos que nos dão uma vista mais interior da mente de Bruno. Quando a mãe apresenta uma pintura grotesca, ele desata a rir de uma forma bastante desnatural e afirma que é a imagem perfeita do seu pai (deve vê-lo mesmo daquela forma horrorosa). Quando passa por um miúdo que segura um balão, ele rebenta-o com o seu charuto e nem sequer esboça um sorriso cruel, e os seus risos são exagerados. Após cometer um homicídio, até ajuda um homem cego a atravessar a estrada, de uma forma bastante invulgar para quem acabou de realizar uma atitude criminosa e precisa de fugir do local o mais rápido possível. E nestes gestos e diálogos acrescentamos que Bruno é desinibido socialmente (quem decide contar o seu plano do homicídio perfeito a um perfeito estranho?), traços egoístas, audacioso e com ausência de remorsos. Uma descrição que condiz perfeitamente com a de psicopatia, Bruno sofre deste transtorno de personalidade. Existe uma cena que evidencia bem o quão diferente Bruno é das outras pessoas. Num jogo de ténis, Guy olha para a plateia que olha para a esquerda e para a direita de uma forma sincronizada, com exceção de uma pessoa, Bruno, que fita Guy.


E desta forma, Alfred Hitchcock criou um assassino que acreditamos ser real e que nos assusta porque sabemos perfeitamente o que quer. Sabemos o que o motiva, sabemos que é perseverante e vai tentar cumprir um fim sem olhar a meios, e pior que tudo, que ele é mais perigoso do que aquilo que aparenta. O herói sofre o mesmo tratamento, sabemos as suas frustrações conjugais e as dificuldades a que foi sujeito, e vêmo-lo a sofrer durante todo o processo por ter acesso privilegiado a informações que desejava não ter. Além disso, existem muitas pistas visuais que vão dando informações simples, mas cruciais para o desenvolvimento das personagens. Tendo construído estas pessoas, há que as pôr em prática, e a história está à altura deste trabalho todo. Não esquecendo do final estonteante e rodopiante com a consequente resolução. Sem resolução, as pessoas não conseguiriam libertar o stress de todo o filme, acreditava Hitchcock. Outros realizadores diferem deste pensamento, mas ele mexia em todas as peças com tal precisão que é difícil imaginar os seus filmes de outra forma a manter a qualidade.


Manuel Fernandes

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