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O Fantástico Senhor Raposo: Dúvidas Existenciais



Em 2020, sonhávamos com a estreia de “The French Dispatch”, que seria apresentado publicamente pela primeira vez no Festival de Cannes. Infelizmente, por razões que não serão necessárias explicitar, as grandes estreias de 2020 foram completamente adiadas, com algumas exceções (olhando para ti, Chris Nolan), e ainda hoje aguardamos por esses filmes. Enquanto assim o fazemos, nada melhor que revisitar as obras destes autores que nos foram habituando com qualidade cinemática e originalidade que não vemos em todos os filmes.


Há mais de dez anos atrás, Wes Anderson decidiu aventurar-se pelo mundo da animação. Os seus filmes coloridos, com um humor por vezes seco, outras vezes ridículo, e temas surpreendentemente filosóficos e existenciais haviam marcado o cinema internacional. Porém, os seus excelentes filmes “Um Peixe Fora de Água” e “The Darjeeling Limited” foram recebidos medianamente pela crítica. Apesar de, atualmente, a sua qualidade ter sido reavaliada (como superiores ao que as críticas originais davam a entender), isto serviu como forma de Anderson procurar mudar a maneira como abordava o cinema. O resultado foi um dos filmes mais amados e encantadores do século XXI, capaz de derreter o coração tanto das crianças como dos adultos, e que mudou por completo a obra de Wes Anderson. E à primeira vista, é de acreditar que se trata de um filme infantil, com uma moral bem definida e com muitas piadas espalhadas ao longo dos quase 90 minutos de criaturas fofinhas a fazer as suas brincadeiras.


Exceto que… não? Quem já viu o filme, deve ter reparado que os temas são particularmente direcionados aos adultos. Há imensa violência, momentos de extrema melancolia, reflexões particularmente pesadas, e um final que não oferece a ideia de tudo ter terminado como era suposto. Claro que as personagens são peculiares, têm um aspeto adorável, nunca usam linguagem obscena e a animação stop-motion é bastante cativante. Mas assim que começamos a pensar no conteúdo é que percebemos aquilo que pretendo dizer. Até se pode dizer que “O Fantástico Senhor Raposo” é um filme existencialista. Se nos focarmos especialmente na fantástica família de raposas, e no que vai pelas suas mentes torna-se transparente que nenhum deles tem noção daquilo que pretende da sua vida ou o que tenha uma resposta definitiva sobre aquilo que é a sua vida. O Senhor Raposo até questiona qual o seu propósito durante uma conversa noturna com Kyle.


A verdade é que estas várias raposas não sabem bem o querem da sua vida. O Senhor Raposo sente-se como um animal selvagem e deseja viver como um, mas as suas responsabilidades maritais e parentais afastaram-no de qualquer pretensão de tal vida. Ao revés, escreve crónicas que ninguém lê, num jornal que muitos compram, mas que nele não pegam. Os eventos trágicos que estes animais sofrem não são o fruto de uma crise de meia-idade, mas sim de uma crise existencial. Um chamamento selvagem, ou simplesmente uma reação contra o mundano da vida são as razões que o levam a engendrar um “último golpe” que se vai prolongando até que as desgraças, fruto da sua imprudência, têm consequências devastadoras para todos os animais que habitam na floresta. Houve mal nisso? Obviamente, que não falo na destruição frenética que Boggis, Bunce e Bean levaram a cabo, provocada pelo desejo de se vingarem do matreiro protagonista, refiro-me à vontade em tentar perceber o que tem a vida programado para nós? Será que isso sequer é uma pergunta legítima? Foram estas raposas feitas para serem animais selvagens? Será que devem seguir profissões ditas mais nobres? Não se esqueçam que falamos de animais antropomorfizados.

Ou até se olharmos para Ash e Kristofferson, continuamos a solidificar estas questões. O primeiro, quer ser um atleta, ser respeitado e adorado da mesma forma que acha que o seu pai é. Em contrapartida, Kristofferson só quer ser feliz. A antecipação em crescer e ter sucesso, na maneira que ele o percebe, são o que levam Ash a ser tão amargurado. As constantes insinuações de que ele é *abanar as mãos num movimento ascendente* diferente, magoam-no. Não há nada pior para uma criança como ele do que sentir-se diferente. O contraste com os outros, especialmente com o seu primo Kristofferson, fá-lo achar que os outros o veem como inferior, ou um falhado. É muito cómico ver que ele traz para a mesa um troféu gigante e finge que para ele é simplesmente mais um das suas condecorações por grandes feitos atléticos, mas esta imagem traz uma forma muito triste de olhar para a maneira como ele se vê a si mesmo. O tímido Kristofferson é assumido por todos como a criança maravilha. Inteligente, atlético, coordenado, e simpático, parece perfeito. O que os outros não vêm é o quão triste ele está por o seu pai estar doente e o quão incompreendido se sente por não o verem como realmente é, apenas o veem como uma amálgama daqueles positivos adjetivos que enumerei.


Até Felicity Fox, a mais estóica da família, que parece ter sempre a resposta para todos os problemas, enfrenta sérias dúvidas relativamente ao seu futuro. Todos olham para ela como a personificação (ou melhor, “animificação” – inexistente no vocabulário, mas que serve o propósito que pretendo) da sensatez e da segurança. É ela quem aconselha o seu marido a largar a perigosa vida que levava, é ela quem o ajuda a perceber o quão erradas as suas ações foram, e é ela quem toma as rédeas quando as coisas começam a descarrilar. Porém, também é nela que vemos algum desespero, por não saber até que ponto foi tomando as decisões “corretas” ao longo da sua vida.


Existe uma melancolia muito palpável nestas personagens. Não é por vermos subtis momentos em que se soltam lágrimas como produto de uma impossibilidade em manter a calma que assim o afirmo. Durante esta longa-metragem, reparamos que ninguém se sente completo, ou que todos se encontram numa jornada para procurar o verdadeiro significado da sua existência. E talvez ninguém acabe por descobrir isso. Normalmente, um filme de animação ofereceria uma certa resposta à sua audiência, mas “O Fantástico Senhor Raposo” diz-nos claramente que não sabe o que oferecer como resolução.



O filme termina com o seguinte monólogo: “Dizem que as raposas são ligeiramente alérgicas ao linóleo, mas é bom para as patas – experimentem-no. Dizem que a minha cauda precisa de ser seca duas vezes por mês, mas agora é completamente removível – veem? Dizem que as nossas árvores poderão nunca mais voltar a crescer, mas algum dia, algo irá. Sim, estas bolachas são feitas de ganso sintético e estas cabidela é artificial, e até aquelas maçãs parecem falsas – mas ao menos têm estrelas. Eu acho que o que eu quero dizer é, nós vamos comer esta noite, e vamos comer juntos. E mesmo sob esta luz não particularmente lisonjeira, vocês são sem dúvida alguma, os cinco e meio animais selvagens mais maravilhosos que alguma vez conheci. Por isso, ergamos as nossas caixas – à nossa sobrevivência.”


Não é um discurso esperançoso. Não temos certezas de nada, apenas uma afirmação cómica de que, apesar de tudo, ainda lá estão, e estão juntos, e que naquele momento, isso é o que mais importa. As dúvidas vão continuar, a demanda por respostas sobre ao que se resume a sua existência prolongar-se-á, mas apesar de tudo, não nos devemos esquecer de quem está ao nosso lado, e que partilha as mesmas dúvidas. Não é uma solução, mas é uma boa forma de abordar um dos piores problemas que advém de existir.


Manuel Fernandes

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