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O Laço Branco: A Origem do Mal


Porque é que existe mal no mundo? Porque é que existem pessoas carinhosas e pessoas cruéis? Será mais fácil acreditar que algumas nascem corrompidas, mas nós não. Nós não temos uma pinga de vilania em nós, mas já os outros, por razões impercetíveis, o têm. Porque só as pessoas da República de Weimar poderiam ter criado algo tão pérfido como o Partido Nazi. Só os mongóis do século XIII, liderados por Genghis Khan eram capazes de massacrar populações inteiras. E a lista poderia continuar, onde “apenas” certos povos em certos períodos do tempo poderiam ser os perpetradores de crimes contra a humanidade. Mas não parecerá esta uma lista simplista com o objetivo de nos excluir de tudo o que é moralmente reprovável? Por mais desagradável que a ideia seja, temos em nós o potencial da crueldade. Porque é que não o somos? Claro que por vezes cometemos ações mesquinhas que nos fazem pesar a consciência e rapidamente procuramos alterá-las. Mas isso é porque somos inerentemente bons e assim nascemos? Ou por razões mais complicadas? Colocar as coisas desta forma, facilita imenso a pergunta, porque é claro que a moralidade não é algo tão simples como haver pessoas boas e haver pessoas más. Vários fatores influenciam a nossa capacidade de fazer o que está bem, desde o nosso estatuto social, experiências passadas, a influência do nosso ambiente, a nossa infância (educação, família), etc… Em momentos, explicarei melhor as ideias agora explicitadas. Por agora, falemos do filme.


Em “O Laço Branco”, o narrador começa por explicar que ele mesmo não sabe totalidade da história. O narrador é um dos muitos habitantes de uma aldeia alemã da primeira década do século XX, um antigo professor e aparentemente, a personagem mais carinhosa e mais dada à harmonia entre todos. A voz dele é aquela de um homem idoso que relembra o seu passado de uma forma melancólica, com imenso pesar. Começa por falar do primeiro evento curioso e macabro que se deu naqueles anos. O médico da aldeia cavalgava pelos campos e de repente, passa por um cabo esticado entre duas árvores, que levou o cavalo a cair e o médico a magoar-se gravemente. Ninguém sabe quem colocou o cabo, nem acabam por descobrir quem o fez. Michael Haneke não colocou rédeas neste filme, pois vemos o acontecimento violento a desenrolar-se de uma forma tenebrosa. Para um filme deste tom, a cinematografia a preto e branco é a ideal, pois afasta-nos de qualquer possibilidade de nos agarrarmos a algo que não seja duro neste mundo. Este evento é só o primeiro de muitas ocorrências inexplicadas e violentas que assolaram a população. Outros incluem: o desaparecimento do filho do barão que mais tarde reaparece com evidentes sinais de ter sido vítima de graves ataques; um celeiro incendiado; ou a morte da mulher do camponês naquilo que teria sido um aparente acidente de trabalho. Entre tantos sinais do mal, parece que a única réstia do bem está mesmo no professor, especialmente na sua relação com a sua noiva, Eva, uma jovem tímida. Porque de resto, todos os momentos emanam uma aura de horror. Não existem monstros que saltam repentinamente para deixar o nosso coração a bater desenfreado, nem sequer há música não-diegética durante o filme para criar uma sensação de inquietação, Haneke quis mesmo mostrar o mundo de uma forma fria, com o sentimento de austeridade que era vivido na altura. A questão que se levanta neste espetáculo terrorífico é “Quem cometeu estes atos?” e todos sabemos, apesar de não vermos a forma como foram cometidos. E apesar do narrador nos confirmar as suspeitas e tentar falar com um dos pilares desta comunidade sobre o assunto, há uma maior facilidade em não aceitar a realidade e deixar os crimes escondidos. Uma cena inicial que evidencia bem os criminosos, envolve uma rapariga, Klara, que é a filha do severo reverendo. Ela está vestida de preto e as outras crianças caminham à sua volta, pintando um quadro assustador, como se a maldade fosse o cerne que agrupava os jovens.


Não há dúvida que foram as crianças desta aldeia que tomaram a iniciativa destas ações. Por muito que digamos que as crianças são o símbolo da inocência e da pureza, elas crescem e tornam-se em adultos. Não será um erro acreditar que elas são imunes à maldade, mas depois crescem e já é permissível vê-las com outros olhos? O que define então o que é aceitável ver numa idade e não noutra? Haneke obriga-nos a ver a fealdade desta ideia, de que mesmo estes seres pequenos podem ser responsáveis por tal selvajaria. Mas não é um simples ser mau porque sim. A corrupção tem razão de ser e ela está nos próprios pais. Assistimos ao quão severos os pais são para com os filhos. Não há carinho nas vozes que são sempre acompanhadas de um tom bastante autoritário. Há que chamar “Meu Pai” e não simplesmente pai ou papá. Para educar, muitas vezes a humilhação e agressão é necessária, “Vou ter de vos bater e as chibatadas doem-nos mais do que a vocês.”, que mentira. Quase como se só através de um ataque é que uma criança consegue entender a diferença entre o bem e o mal. “A cor branca serve para vos recordar que há que ser puro e inocente”, diz o reverendo quando falou sobre a necessidade de colocar um laço branco no cabelo da filha, para a relembrar de que ela se estava a afastar deste símbolo. São atos que para nós não passam de simples barbárie, uma violência mental extrema que não cria pessoas decentes, mas sim seres vis com um sentimento de impotência e com vontade de se afirmar na mesma forma dos ataques de que foram vítimas. E os próprios pais, cujas funções de reverendo, médico, camponês, ou o que for, que deveriam simbolizar uma vontade em servir a comunidade da melhor maneira, cometem crimes hediondos nas suas vidas, escondidos do escrutínio dos outros. Para além disso, a religião não é usada como um símbolo de fé, nem como uma aprendizagem da boa vontade entre as pessoas (que para mim devem ser os pilares de qualquer pessoa cristã). É uma forma de se desculpabilizar das maldades que fazemos, pois, foram a vontade de Deus. “Se Ele não quisesse que tal ocorresse, Ele ter-me-ia parado” parece ser este o pensamento geral destas crianças. Numa altura em que o professor vai pescar no rio, aproveitando a abundância de trutas, repara que uma criança anda pelo corrimão da ponte, algo evidentemente perigoso. Quando questionada pelo professor, o miúdo diz: “Quis pôr-me nas mãos de Deus”; o que mostra o quanto das suas ações atribuem estas crianças a Deus. Noutra cena, vemos uma criança a perguntar sobre o que é estar morto, uma questão que não vem da curiosidade infantil, mas sim das consequências daquilo que eles fizeram. E talvez a coisa mais assustadora que vemos das crianças é quando uma porta se fecha e apenas ouvimos outra criança a gritar desalmadamente e com um intenso desespero na sua voz. Não há dúvida que estes querubins que andam sempre em grupo como uma alcateia sedenta de sangue, com seus olhos tristes e expressões inofensivas que nos afastam de qualquer pensamento brutalidade, foram capazes de coisas tão cruéis.


A história não termina, mas o narrador não sabe mais dela, pois em 1914 irrompe a Primeira Guerra Mundial e ele é destacado para combater. A última coisa que vemos é uma imagem de imensa ironia. Na igreja, vemos os habitantes sentados prontos para ouvir o sermão, assustados com as novidades de Guerra e esquecendo os brutais acontecimentos que viram no último ano pois algo de maior importância surgiu. Em cima, vemos as crianças da aldeia que formam o coro da igreja, elevados perante os outros, de uma forma quase angelical. E nós, a audiência, somos impotentes. Sabemos que foram eles, e sabemos que nada podemos fazer para os denunciar. Por isso, eles mantêm aquela posição, eles saíram por cima.


Muitas vezes, “O Laço Branco” de Michael Haneke é referido como um filme que procura explicar as origens do movimento nazi. Passa-se numa aldeia alemã, entre 1913 e 1914. As crianças desta geração são as que anos mais tarde viriam a participar no mais sangrento momento do século XX. Mas dizer isso, é ignorar a ocorrência de acontecimento semelhantes em escalas diferentes, tanto no século passado como no atual. Michael Haneke vai mais longe e não afirma que seja sobre um acontecimento único. Disse que “é sobre as raízes do mal”, e este tipo de coisas vai mais longe do que a enumeração de eventos históricos que levaram a catástrofes, pois obriga-nos a olhar para nós mesmos, e para o mundo à nossa volta e tentar perceber o que é a moral, o que está certo e errado e se realmente há algo correto a fazer. Porque dizer que não somos maus é acreditar que temos as qualidades de um Deus ou de um anjo. E mesmo assim, não podemos esquecer que Lúcifer também era um anjo. Michael Haneke não se restringe quando explora esta dualidade humana, os seus filmes assim o provaram. Em “A Pianista” examina a vida de uma mulher masoquista, “Brincadeiras Perigosas” mostram um assalto violento, e em “Amor” a tristeza e solidão de um casal de octogenários. Ele obriga-nos a confrontar o lado mais negro daquilo que é a nossa condição de humanos e a ver as partes mais desagradáveis da vida. A maior parte das pessoas procura afastar-se por completo de tais assuntos. Porquê entristecer e pensar sobre estas coisas? Na minha opinião, porque fugir destas coisas sem refletir sobre elas cria uma camada de agradabilidade sobre o mundo à nossa volta, com o intuito de nos proteger do mal, acabando por nos fazer ignorar a sua ocorrência, e se desvalorizarmos a existência do mal (tal como quem ignora o passado) está destinado a cair nos mesmos erros. Quem conhece estas atitudes e conhece o poder do bem, tem a capacidade de tomar melhores decisões num mundo realista. E não colocar um degradante laço branco nos cabelos que nos rebaixe e esperar que não haja reação.

Manuel Fernandes

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