top of page
Foto do escritorunderscop3

O Mundo num Arame: Reinventar a Realidade



“Sei uma coisa que tu não sabes. Uma coisa que ninguém pode saber. Pode significar o fim deste mundo.” e a câmara afasta-se da anteriormente íntima conversa entre a audiência, Vollmer e Lause, como que se não tivéssemos direito a saber ao que se refere. Vemos os dois homens de longe, sem saber se Vollmer realmente esclareceu Lause, ou se, tal como nós, ele ficou no desconhecimento. Vollmer sai da sala, perseguido por uma luz vermelha intermitente que quase nos avisa do perigo que advirá. De uma forma bizarra, Lause não percebeu que Vollmer saiu, e quando finalmente o encontra, o seu corpo cai e jaz morto. Uma queda surreal e incompreensível. Vemos o cadáver através de um emaranhado de fios, e melhor metáfora não existe para simbolizar este mundo concebido por Rainer Werner Fassbinder.


O prolífico autor alemão adaptou a obra “Simulacron-3” de Daniel F. Galouye e afastandose das temáticas emocionais exploradas em filmes prévios como “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, permitiu-se a tocar em temas mais filosóficos e existencialistas. A estética tem aquele toque de Fassbinder, com cores chamativas e uma decoração meticulosamente preparada que dá vida a cada novo espaço que acedemos. Quer seja um quarto que resplende com a personalidade da pessoa que nele habita, ou um escritório que grita a impessoalidade e automatização futurista, tudo foi estudado escrupulosamente para impressionar a audiência. Pensamos no quanto Fassbinder se aproximou das obras-primas de ficção científica “BladeRunner: Perigo Iminente” ou “Matrix”, e simultaneamente delas também se afastou. Décadas antes destes trabalhos, já o realizador alemão havia trazido as questões: “Eu existo?” e “O mundo em que eu vivo é real?” ao cinema, no entanto, o seu passado teatral veio ao de cima e a dualidade entre a beleza de existir e a tristeza de um universo totalmente computadorizado dilui-se. Não nos são apresentadas máquinas em toda a sua grandiosidade mecânica e com vilania a fluir nos seus circuitos. A sociedade não está dividida por um fosso brutal de iniquidade. Tudo está somente coberto por uma camada visualmente harmoniosa que nos faz refletir na elegância que é passível de existir à medida que a humanidade vai evoluindo tecnologicamente, e, debaixo dela, habita a feia verdade.


Fred Stiller servirá como projeção da audiência neste mundo aparentemente refinado. Trata-se do substituto nas funções do recentemente falecido Professor Vollmer, cujo trabalho implica a manutenção do supercomputador Simulacron, capaz de criar um mundo de realidade virtual que em tudo se assemelha àquilo que as pessoas conhecem e tomam como verdadeiro. Os sujeitos que nele se ligam não compreenderão a diferença entre o mundo dentro e fora da simulação. Tal como um espelho, as imagens são refletidas da maneira que os nossos sentidos as percecionam. Por mais genuíno que aparente ser, nada é real ou autêntico, são projeções da mente. Autêntico será inclusive uma palavra dúbia para descrever o mundo exterior ao Simulacron dado que este não aparenta apresentar grau algum de sujidade, tudo é belo. A aparência é essencial nesta sociedade ao ponto de as primeiras palavras de Stiller serem referentes ao seu aspeto físico. Quando uma bela mulher de olhos azuis e um vestido turquesa aprecia a sua musculatura, ele desmente, confirmando que se trata de chumaços e não músculos. E não é só em Stiller que encontramos traços de um universo cuja decadência se prende com a ideia de exteriorizar ao máximo aquilo que se pretende mostrar. As pessoas em seu redor assemelham-se a manequins sem vida, numa festa dominada pelos tons de azul que nascem do reflexo da piscina no centro do espaço, outro espelho a refletir o mundo do Simulacron no exterior (ou o próprio Simulacron?). Elas têm o físico e semblante das lindíssimas modelos que invadem os nossos sonhos. Eles transpiram poder e riqueza que só homens de alto estatuto possuem. Inclusive, a música de fundo é cantada por uma mulher que relembra uma paródia da famosa Marlene Dietrich. Por todo o filme, quase não parecem existir pessoas reais, apenas um requinte exterior que não nos permite inferir se alguma correlação terá com o interior. As próprias conversas não revelam qualquer distinção entre as personalidades das várias personagens. Números em vez de palavras são usados para descrever tudo. Se se fala de um carro, há que referir a potência e o seu valor monetário. O processo de sedução até envolve as medidas corporais. 106-65-98, perdão 106-65-99 que muito tempo sentada faz engordar. Será possível criar alguma interação natural?


“O Mundo num Arame” é uma interpretação fria e calculista do controlo que oferecemos à computação e cujas questões relativas à artificialidade do eu podem ser traçadas à alegoria da caverna de Platão. Um quebra-cabeças sensacional que forçará a audiência a revisitar as malditas questões básicas da existência humana. Findo o filme, questiono o que me rodeia. O mesmo não acontecerá com o leitor?


Manuel Fernandes

10 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page