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O Rei da Comédia: Rir Para Não Chorar


“Melhor ser rei por uma noite do que um falhado para o resto da vida!” disse Rupert Pupkin, o protagonista de um dos mais desvalorizados filmes de Martin Scorsese. E se acharem que algo está errado nesta frase, nomeadamente um extremo cariz autodepreciativo ou uma perceção errada da realidade, então estais a pensar bem, pelo menos da maneira que eu vejo. À primeira vista, parece verdade, realmente é preferível ser a estrela pelo menos uma vez do que simplesmente sentir um fracasso durante toda a vida, sem ter um momento qualquer de brilhantismo. Mas há que analisar bem o que está escrito, pois assumir o mundo desta forma implica uma depreciação enorme de nós mesmos, e é aí que está a genialidade de “O Rei da Comédia”.


Todos conhecem as estrelas da televisão, dos filmes, de programas de talk-show. As celebridades criadas pelos media e que atingem um estatuto de deuses. Por vezes até sentimos que os conhecemos pessoalmente, estamos tão habituados a ver as suas caras, a ouvir as suas histórias pessoais, parece mesmo que vivem à nossa beira. E depois existem os “plebeus”, as pessoas anónimas que vivem abaixo destes deuses e que ninguém conhece. Uma comparação um bocado ridícula, mas a verdade é que, por vezes, esta parece ser a divisão que aparentemente vigora, apesar de não ser real. É assim que temos as três principais personagens de “O Rei da Comédia”: Jerry Langford, interpretado por um verdadeiro rei da comédia, Jerry Lewis; Rupert Pupkin, um dos melhores papéis de Robert de Niro; e Masha (tão anónima que nem apelido tem) interpretada por Sandra Bernhard.


Jerry Langford é capaz de ser a personagem de Jerry Lewis que mais se assemelha à verdadeira personalidade do ator, comparativamente a outras personagens suas. Não tem uma voz estridente, não faz palhaçadas, nem tem o seu antigo amigo, Dean Martin, a servir como um contraponto. É uma pessoa séria, interessada no negócio e bastante diferente da sua imagem de televisão. Como disse, é muito semelhante ao verdadeiro Jerry Lewis, e isto foi um casting brilhante da parte de Martin Scorsese. Jerry Langford é o apresentador do mais famosos talk-show americano neste filme, o mito da celebridade, a estrela que os outros apenas sonham conhecer. Já Rupert Putkin é um aspirante a Jerry Langford. Ele sonha ser um comediante e está preso num mundo fantasioso. Um mundo em que se te esforçares imenso, as coisas acontecem e a ti estão prometidas todas as joias no final. Como sabemos, nem sempre a realidade é assim, e infelizmente, a realidade anda a consumir Rupert. Ele nem é assim tão engraçado ao ponto de poder vingar neste meio. O facto de ter 34 anos e a sua audiência ser composta por figuras imaginárias já nos diz muito. E se isso não bastasse para sentirmos alguma empatia por Rupert, o facto de ele ainda viver com a sua mãe de uma forma infantilizada, será o golpe final. Se é que realmente a mãe dele está lá. Ele grita “Mããããããe” como uma criança incomodada por ver a sua brincadeira interrompida, mas nunca vemos a sua mãe. Digo isto porque Rupert tem uma mente hiperativa, e acaba por fantasiar algumas coisas, acabando por as tomar como realidade. Talvez a existência da sua mãe seja uma delas. Já Masha, é uma personificação da erotomania. Ela é completamente anónima para nós, não a conhecemos muito bem. A única coisa que percebemos dela é a paixão que tem por Jerry Langford, paixão essa que acredita ser correspondida.


Ao contrário de outros filmes de Martin Scorsese com Robert de Niro, cito “Os Cavaleiros do Asfalto”, “Taxi Driver”, “New York New York”, “O Touro Enraivecido”, “Tudo Bons Rapazes” ou “O Cabo do Medo”, este filme não é explosivo. Scorsese e de Niro baixaram o volume de 10 para 5 e deixaram-se levar pela subtileza. Eu que o diga, pois apenas consegui compreender o quão espetacular o filme foi assim que terminou e refleti sobre o mesmo. As imagens são particularmente poderosas, apesar de não o parecerem. Por exemplo, os créditos iniciais. Jerry Langford mal consegue entrar na sua limusina à conta dos apaixonados fãs que querem sentir um pouco dele a fim de por alguns momentos estarem ao seu “nível”. Masha invade o seu carro e faz uma cena, enquanto Rupert tenta ajudar Jerry a livrar-se do sufoco da situação, puxando os outros fãs para trás. Ao estilo de “Os quatrocentos golpes”, a imagem para enquanto vemos os créditos iniciais. O que vemos? As mãos de Masha contra o vidro que a separa de Rupert e Jerry. Enquanto que Rupert está agachado a olhar para Masha através do vidro, a superfície de separação entre ambos que metaforicamente será a maneira como Rupert se vê perante outros fãs como Masha (ele acha que está mais próximo de Jerry que qualquer outra pessoa), Jerry não se baixou, ao ponto de vermos apenas o tronco dele mas não a sua cara. Como se Jerry estivesse tão longe de Rupert e Masha que perde a sua cara e se torna numa representação divina que estando fisicamente próximo de ambos, está bastante longe dos dois. É a este nível de subtileza que funciona “O Rei da Comédia”. As imagens estão lá, os símbolos e significados também, mas encontram-se escondidos entre as piadas e o humor da situação, tanto que por vezes pode ser impercetível para os menos atentos.


E para além disso, há a enorme tristeza na personagem de Rupert Putkin. Ele engendrou um plano que o ajudará a tornar-se no Rei que ele sempre sonhou ser e que lhe permitirá vingar-se de Jerry pela forma como o tratou, leia-se que Jerry simplesmente o tratou como trataria qualquer pessoa que o estivesse a incomodar ou a forçar a sua presença. Para Rupert, não foi bem assim, pois acredita que ele e Jerry são na verdade grandes amigos após a pequena interação que tiveram. Mas a verdade é que Rupert não é nenhum vilão nem tem intenções malvadas. É apenas um homem que se deixou cair no buraco que é o mito da celebridade. E isto aconteceu porque a vida não foi muito carinhosa com ele. Não quero revelar o remate do filme (como uma piada na qual esperamos pelos últimos momentos para nos rirmos), apenas direi que o humor de Rupert Putkin é exatamente aquilo que esperava que fosse, e isso foi doloroso de ouvir. “Eu olho para toda a minha vida e vejo as suas partes terríveis e tento torná-las em algo engraçado” é algo dito por Rupert que revela muito bem aquilo que pretendo explicar. É assim a comédia da vida.


Para terminar, Rupert disse que, para ele, a ironia da vida é sentirmos que não podemos dizer aquilo que queremos quando queríamos fazê-lo, e quando finalmente não há problema algum em fazê-lo, que já não é relevante. Para mim, a ironia final da vida prende-se com o facto de termos tanto para viver e continuamos a perseguir coisas que na verdade não têm interesse, julgando que isso é que é viver, e quando olhamos para trás, aí é que percebemos o quanto não vivemos.

Manuel Fernandes

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