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Os Chapéus de Chuva de Cherburgo: Amor e Tragédia



Não sei se haverá alguém que melhor uso terá feito das cores no cinema do que Jacques Demy, o marido de Agnés Varda ao qual ela fez tantas homenagens através do meio artístico que ambos amavam. O filme abre com a paisagem de Cherburgo, vemos o oceano e de repente olhamos para baixo, uma parada de coloridos guarda-chuvas atravessam os nossos olhos. É uma imagem que nos faz abrir os olhos para apreciar a beleza multicolor que apareceu de forma inesperada. Subitamente, começa a chover e as belas cores vão-se desvanecendo, dando lugar a um azul desolado, inclusive, a última fornada de guarda-chuvas são de tons pretos, cheios de desesperança. Esta imagem assemelha-se à triste história de amor que Demy conta através das músicas de Michel Legrand e da câmara de Jean Rabier. É a angústia de ser jovem e estar apaixonado num mundo que não quer aceitar que talvez o melhor seja uma paixão sincera e não a conveniência. Poderemos discordar, mas assim pensa Jacques Demy e assim o faz.


Trata-se um musical no qual todas as falas são ditas de uma forma cantada, algo que à primeira vista pode apoquentar a paciência de muitos espectadores, mas assim que a melodia começa a fluir, é incompreensível acreditar que o filme poderia ter outra forma de existir. É o mundo de Jacques Demy, colorido, expressivo, cheio de música, cinemático ao máximo e ainda bem que assim o é, agradecemos pela existência de pessoas que quiseram mostrar aos outros as coisas que mais gostam da maneira mais espetacular possível. E apesar de associarmos frequentemente sentimentos agradáveis aos musicais, Demy mostra que o contrário é possível acontecer. Se formos por partes, tal e qual a divisão desta obra, perceberemos melhor porquê.


Ao contrário da maioria dos filmes românticos, “Os Chapéus de Chuva de Cherburgo” não nos apresenta os futuros amantes e a forma como vão tropeçando um no outro até traçarem por fim o destino que eles e nós próprios desejamos. Conhecemos Guy e Geneviève são dois jovens namorados que vivem a sua relação da maneira que os mais apaixonados fazem, com abraços longos, olhares fitos um no outro e sorrisos de orelha a orelha. Rapidamente percebemos o quanto se amam, algo que palavras ou canções não nos diriam de maneira tão expressiva. Conhecemos também a mãe de Geneviève, que se opõe a esta relação, por temer o pior para o coração da sua filha, pois Guy terá que cumprir o serviço militar proximamente, algo que irá separar os amantes por um longo período e para além disso, acha Geneviève demasiado jovem para ele e também que Guy não sendo um homem de grandes posses, não poderia sustentar aquela que deseja para futura esposa. Roland Cassard é a quarta personagem de grande importância nesta trama. Quem viu “Lola”, a estreia de Jacques Demy nas longas-metragens do cinema, reconhecerá esta cara e este nome. Trata-se do mesmo homem, não sendo este filme uma sequela de “Lola”. Quem pensa que a Marvel foi pioneira na criação de um universo cinemática que se desengane, pois Jacques Demy expandiu esta noção em vários filmes. Roland vem para Cherburgo de coração partido, após o encontro fortuito com Lola que em nada de maior se concretizou que não um desejo inalcançável. Tenta aproximar-se da bela Geneviève, uma decisão apoiada por Madame Emery, uma mulher da qual não nos é dada muita informação, mas que rapidamente vamos percebendo que vive perseguida pela solidão e uma provável paixão que a deixou sozinha com uma filha, não querendo o mesmo destino para a sua pequena.


E assim sendo, com uma pequena exposição e apresentação de todas estas personagens, passamos de um estado de extrema felicidade para uma tragédia inevitável e que ditará o descalabro amoroso que se avizinha. Esta parte culmina com o intenso e doloroso adeus entre os jovens que se tornam adultos de uma forma mais rápida que a que teriam desejado, acompanhado das harmonias perfeitas orquestradas por Michel Legrand e de lágrimas pesadas, cortesia das atuações perfeitas de Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo que representam eximiamente o quão difícil é despedir daqueles que amamos com todo o nosso ser. O comboio parte e com ele Guy desaparece de Cherburgo, deixando para trás Geneviève e a promessa de uma vida juntos para a eternidade.


Convenientemente, a segunda parte intitula-se de “A Ausência”. Com Guy fora de cena, como lidar com a própria vida que aparenta não ser de valor qualquer agora. Sem aqueles que amamos, que vida merece ser vivida? Para complicar a situação financeira que as mulheres da família Emery vivem, a última noite que estes namorados passaram, terminou com uma semente que poderá ser o tópico de conversa do bairro. Mais do que nunca, torna-se essencial juntar Geneviève a Roland, este homem perfeito. Pode parecer somente a história trágica desta rapariga, mas para Roland, também significará a perda do seu verdadeiro amor, para ele Lola ficará para sempre no passado e jamais voltará a sentir aquilo que por ela sentiu, ficando reservado para o seu futuro, pequenas amostras daquilo que poderia ter sentido caso Lola a ele se juntado. Acredita que com Geneviève encontrará a verdadeira felicidade, não será isso totalmente verdade. Para aqueles que conhecem essa obra de Jacques Demy, irão ver estas interações de uma forma totalmente diferente, não olhando para Roland como um vilão, mas como mais um desafortunado alvo desta tragédia.


Talvez parecesse que o intuito de Madame Emery juntar Roland a Geneviève, mas as suas expressões fugazes e incapazes de esconder o que realmente pensa poderão dar a entender que talvez ela tivesse caído sob um feitiço vindo diretamente dos olhos azuis de Roland e que acreditasse que fosse a ela que ele estivesse a pensar pedir a mão. Poderá simplesmente ser a surpresa na situação e na descrição que Roland fez de Lola, mas a dúvida permanece. Mesmo quando somos mais velhos, quando nos apaixonamos, retornamos a um estado de juventude máxima, incapaz de esconder os sorrisos e desejos de uma vida fantástica com alguém perfeito. Infelizmente, durante a ausência de Guy, tudo se desenrola e termina com o casamento de Roland e Geneviève. Prepara-se a terceira e última parte.


Se no segundo segmento sentimos a falta de Guy, este terceiro será marcado pela ausência da amada. Guy retorna a Cherburgo após o término da sua carreira militar que foi acossada pela guerra com a Argélia. Voltar é sempre difícil, mas a dificuldade é elevada quando o nosso mundo é virado do avesso. Descobrir que aquela pessoa que amamos se casou, desapareceu e com ela o nosso filho que nunca fora visto por nós é devastador. Olhar para uma simples onde antes estiveram estas duas pessoas torna-se numa tarefa hercúlea, pois nela estão guardadas as memórias de um tempo mais fácil em que tudo parecia caminhar para um final perfeito. Guy está completamente perdido, acabando por perder o emprego e por recorrer a outras formas que lhe permitam ter uma réstia do afeto que Geneviève lhe dava.


Tal como Geneviève, ele resigna-se e acaba por casar com Madeleine, por quem sentia um carinho enorme, mas nunca o amor que teve pela rapariga dos seus sonhos que por agora será uma mulher. A vida continua e não irá parar com os nossos desgostos amorosos. Seria bom para Guy saber que as coisas não estão perdidas e que há uma chance de voltar atrás. Queríamos também que assim fosse, mas tal é impossível e é preciso continuar pois parar é morrer. Resignar poderá ser uma palavra muito forte, e Madeleine e Guy gostam de um do outro sem dúvida alguma. Mas não vemos neles aquilo que vimos na primeira parte do filme. Madeleine também questiona se Guy não estará a agir por ação de um impulso e pensa secretamente em Geneviève. A dúvida resta também no meu ser.

Para finalizar, nada como partir ainda mais o nosso coração. Quem se lembra do final de “La La Land” irá perceber que “Os Chapéus de Chuva de Cherburgo” é o filme preferido de Damien Chazelle e que neste filme se inspirou fortemente quando criou o seu musical romântico. Um último encontro entre os dois protagonistas, antes jovens, agora adultos feitos e com vidas díspares pela frente. Seria tão bom se eles pudessem largar tudo e voltar atrás no tempo. A vida, porém, não permite tais loucuras e um adeus desprovido de qualquer sentimentalismo é a única forma de tolerar tal situação agonizante. Mas nós sabemos que os nomes dados às crianças, François e Françoise, não são uma coincidência, mas sim uma relembrança de um passado que fica manchado pela memória de uma longa ausência injustificada. O amor é para os jovens… o desgosto também…

Diogo Ribeiro

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