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Perfect Blue: Quem és, na verdade?


Mima Kirigoe (voz de Junko Iwao) é um ídolo pop semipopular, à procura de uma mudança de carreira. Decidindo tornar-se atriz, ela consegue um papel na série Double Bind, um policial de mistério carregado de sexualidade, o completo oposto da pureza e inocência contratual do seu antigo emprego. Isto é algo que não agrada nada aos seus fãs, que começam a enviar-lhe ameaças e insultos anonimamente. O pior é que descobre um blog chamado O Quarto de Mima, onde o seu dia a dia é descrito com precisão, com detalhes tão precisos que é impossível alguém para além dela saber. Mas não foi ela que escreveu no blog... certo?

Assim começa Perfect Blue, um filme de Satoshi Kon onde o real e o imaginário são indistinguíveis, criando a instabilidade e a loucura que atormenta a nossa heroína durante uma hora e meia. Esta obra é a estreia de Kon como diretor, e lançou a sua carreira como um artista que explora os limiares da realidade, misturando facto e ficção de forma suave e elaborada.

Para quem quer ver a obra completa de Satoshi Kon, este filme é o ideal para começar. Perfect Blue consegue representar a dualidade de Mima, sendo isso perfeitamente explícito no início. Mima está a fazer a sua última atuação e, enquanto canta, a obra corta para ela fazer compras. As partes das compras, silenciosas, mundanas, contrastam com o brilho e o barulho constante do concerto.

Para antagonista, sem dar muitos spoilers, a Mima é incrível. Não Mima a pessoa, mas a identidade que ela está a tentar deixar para trás. O grande conflito é entre estas duas personas, e a dúvida de quem é que ela realmente é persiste ao longo do filme no meio da loucura e fluidez de factos e eventos. A protagonista alucina sobre a sua personalidade passada, que a atormenta ao afirmar que ela é a Mima “real”, não a mulher que quer ser atriz. Há algo de fascinante sobre quem costumávamos ser, ou alguém que fingíamos ser, ganhar vida própria e torturar-nos psicologicamente.


A crise de identidade de Mima começa a ganhar força ao longo de Perfect Blue: cenas da série que ela está a gravar tornam-se reais, apenas para voltar ao policial fictício, como se nada tivesse acontecido. A última metade do filme é excelente neste aspeto, sem nunca se manter numa só realidade, cortando para a frente e para trás numa confusão absurda e aterrorizante, em que nem a nossa heroína nem o público que vê o filme consegue perceber o que é real e o que é só uma alucinação.


Curiosamente, a cor predominante de Perfect Blue não é o azul, mas sim o vermelho. Ao longo da obra, a cor ganha cada vez mais predominância, especialmente nas cenas de maior violência. À medida que a insanidade de tudo se intensifica, o vermelho começa a aparecer mais e mais, concentrando-se no antagonista no final, sendo o vermelho mais intenso que vemos no filme inteiro. Esta associação do vermelho à loucura intensifica a tensão na audiência, por ser uma cor tão forte e agressiva, deixando-nos desconfortáveis.

Em relação à arte, dou mérito pelo estilo mais realístico em que Perfect Blue é desenhado.


Ao contrário da maioria de animes, as pessoas do filme não têm olhos grandes, ou cores irregulares no cabelo. Na verdade, a maior parte das personagens são simplesmente feias. Aqueles que participam no mundo do espetáculo em frente à câmara são aqueles que são mais tradicionalmente atraentes, que faz sentido. Todo o estilo confere um sentimento de realidade naquilo que vemos, antes de a atirar da janela e fazer-nos duvidar daquilo que vimos. Quando algo mais fantástico acontece, como o aparecimento da Mima, ídolo pop, há um certo brilho no seu desenho, como se fosse uma figura angélica. Aliás, realça mais um contraste no filme, sendo esse contraste entre a estranha e serena perfeição que vemos e a violência agressiva e sangrenta que a realidade contém.

Há várias cenas que são incríveis em vários sentidos, mas, como prefiro não vos contar muito da história, vou falar de uma cena no início, em que, durante o último espetáculo de Mima, um dos seus fãs eleva a palma da mão à sua frente. Quando mostra o seu ponto de vista, é nos mostrado que, com um pequeno truque de perceção, parece que ela está a dançar na palma da mão dele. É algo pequeno e curto, mas diz tanta coisa sobre as personagens em questão que ficou gravado na minha memória.

Perfect Blue é um clássico de animação, não há dúvida. O filme inspirou filmes ocidentais em mais do que uma maneira (o melhor exemplo é Black Swan, com uma premissa muito semelhante), e aborda a temática da identidade de tal forma que ainda se pode aplicar hoje. Imaginem que a pessoa que somos nas redes sociais ganhasse vida, e vos aterrorizasse com alucinações e insultos, ou que alguém que nunca viram e decidisse que sabia tudo sobre ti através do teu Instagram. Por muito que neguem e digam que sabem quem são, todos se recusam a ver outra pessoa para além da imagem já criada. Imaginem isso, e perceberão o terror que Mima sofre.

Quem somos, realmente?


Filipe Melo

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