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Primavera Tardia: Como aceitar a passagem do tempo

  • Foto do escritor: underscop3
    underscop3
  • 2 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura


Falar de Yasujirō Ozu é falar de ângulos de câmara pouco convencionais e uma câmara quase estática que mesmo quando está inerte, transborda de movimento. Também é falar da cultura japonesa e o choque com a cultura ocidental trazida ao Japão, da família, do choque de gerações, e de nós mesmos, pois evidencia em todo o seu trabalho as vivências humanas que são universais. Ozu trazia o mundano das nossas vidas e mostrou a beleza, emoção, rutura e a mágoa que nos acompanha durante o passar dos anos.


Em Primavera tardia, é apresentada a relação entre o pai, Shukichi Somiya, e a sua filha, Noriko Somiya de já 27 anos, ambos interpretados por colaboradores frequentes de Ozu. O essencial está na condição de viúvo de Shukichi que irá mover o enredo em torno de uma questão cultural muito proeminente, no Japão apresentado no filme, o casamento. Assim, quais são as visões das personagens sobre a temática? Noriko conversa com um amigo do seu pai, também viúvo, e este afirma ter voltado a casado recentemente. Noriko sente-se repudiada pela ideia, exprimindo-o diretamente. Talvez uma expressão do antigo Japão que é transmitido dos pais aos filhos, ou até através de outros sistemas culturais que se impregnaram bem na mente das gerações seguintes (um fenómeno não exclusivo do Japão, é constante no tempo e no espaço em todos as populações). Porque voltar a casar poderá causar talvez uma disrupção na visão que nós como filhos temos sobre os nossos pais quando assim é a dinâmica familiar. Voltar a casa após a morte da mãe poderá até ser para alguns um sinal de desrespeito da sua memória. Como se fosse possível substituir uma pessoa que tanto se amou. Uma primeira condição que leva a algum debate sobre a vida em família.


E sobre o primeiro casamento? Mais uma vez, o Japão sente que casar é essencial na vida dos jovens adultos, algo muito aceite na tradição. Assim, as expectativas que os mais velhos têm sobre Noriko é que ela deveria casar. Noriko sente exatamente o mesmo. Assim sendo, qual o problema nisso? Mais uma vez, falamos de um Japão assente na tradição quase feudal do passado com ideias bem definidas sobre o papel que se tem numa família. Casar significaria para Noriko ter uma nova vida e deixar o seu pai para viver noutra casa com outra pessoa, talvez noutra região e eventualmente ter filhos, e esses serem a sua prioridade. Shukichi ficaria então sozinho e não teria ninguém para cuidar dele. Sabemos claro que um homem adulto conseguirá cuidar bem de si mesmo, mas esta é a mentalidade que domina Noriko, neste momento. Mas para grandes problemas, há grandes soluções, e Masa, irmã de Shukichi, apresenta um desfecho aparentemente feliz para ambos. Noriko poderia fechar este capítulo da sua vida se o seu pai voltasse a casar (algo que ela discutiu já com Shukichi e ele não ficou de pé atrás). E é isso mesmo que deseja. Pretende apresentar Noriko a um homem e o seu pai a uma mulher igualmente viúva. Para nós, é terrivelmente antiquado um arranjo (apesar de aqui manterem pelo menos a liberdade de escolha) mas para estas personagens é algo perfeitamente normal. Evidentemente, a ideia assusta Noriko pois trata-se de mudar radicalmente o seu estilo vida que, de momento, é algo que a deixa muito feliz.


Mais cedo ou mais tarde, chegamos a um importante diálogo. Um confronto entre pai e filha, bastante emocionado. Shukichi admite e lamenta que durante muitos anos a vida, entre somente pai e filha, habituou-os a uma situação estagnada que não permitiria a Noriko explorar melhor tudo aquilo que poderia vivenciar. Está na hora de abandonar o ninho, dá ele a entender. Ele afirma que fará o mesmo pois decidiu que voltará a casar, consentindo assim com o arranjo da irmã (mente e assim o fez de forma a ajudar Noriko a tomar um novo rumo que não o prendesse a ele). Destroçada, Noriko refugia-se nos seus pensamentos. Não foi obrigada a casar, mas foi-lhe dada um primeiro empurrão para procurar uma vida diferente, talvez mais adequada. Ainda que um doloroso empurrão pois num só lance de palavras, todas as introspeções/obstáculos que teorizava parecem culminar num só momento.




Progressivamente, vai conhecendo melhor o homem com quem a pretendem juntar e acaba por gostar dele. Também conhece a nova mulher do amigo do seu pai que foi anteriormente referido e até fica com bastante boa impressão dela (apesar dos comentários severos que lhe havia tecido). Poderá até mudar aquilo que pensa sobre o problema central da estória. Mas como um grito final por ajuda, confidencia a seu pai aquilo que sente e questiona se mesmo com o casamento dele se as coisas não poder-se-ão manter iguais pois nunca será feliz como quando está com o seu pai. Um poderoso monólogo segue-se sobre a vida daquilo que é um novo casal, algo que eu percebi como comparável a outras etapas da vida que não o casamento (que nem sempre é uma etapa na vida). A felicidade não é algo pela qual esperamos. É algo que se constrói e advém do esforço. Antes de podermos ter algo de bom iremos passar por fases piores, dotadas de maior tristeza, mas a vontade e força, aliadas à perseverança são aquilo que permitem ultrapassar os maus momentos de forma a atingir os melhores. Noriko acaba por consentir e casa-se num daqueles que foi sem dúvida um dia inesquecível. Já Sukichi acaba inevitavelmente sozinho, também ele tem à sua frente uma nova etapa na sua vida.


A mudança é por vezes algo que abraçamos por completo e ansiamos que com ela venha tudo aquilo que de positivo foi prometido. Do mesmo modo, pode ser um fundo assustador, negro como o breu em que as possibilidades de atingir sequer contentamento com a vida estão restringidas ou serão sequer nulas. A nossa mentalidade/o nosso meio cultural é algo muito forte no processo de aceitação. Como indivíduos, podemos deixar que isso nos puxe para trás sem que consigamos crescer. Não pretendo tomar uma atitude revolucionária quanto àquilo que atualmente rege o mundo. Há razões para as coisas serem como são. No entanto, podemos perceber e aceitar que o tempo realmente passa. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” disse Camões. O crescimento pessoal é dotado da mesma qualidade. E tudo que existe no mundo segue o mesmo processo, por exemplo, o desabrochar das flores na Primavera, simbólico deste mesmo crescimento. Nós também o fazemos. Podemos não o fazer ao ritmo de todos os outros, mas pouco a pouco, chegamos à Primavera. Nem que seja tardia.


Manuel Fernandes

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