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“Rashômon”: O que é a Verdade?



Em 1950, um realizador japonês explodiu mundialmente e a partir daí, ficaria para sempre na boca do mundo. Akira Kurosawa, um dos cineastas mais influentes e reconhecidos da História do cinema, elevou o seu nome com uma das suas obras-primas, “Rashômon”, estreado em Portugal como “Às Portas do Inferno”. Ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza e um Óscar Honorário, numa altura em que não havia Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (a forma do cinema americano tentar elevar-se ao resto do mundo, uma coisa que os grandes festivais de cinema europeus, asiáticos ou de outras partes não fazem). O filme teve tanto impacto que até deu origem ao chamado efeito rashomon na psicologia, que é usado para descrever quando não é possível averiguar a veracidade de uma situação devido ao facto de todas os envolvidos terem perceções diferentes daquilo que ocorreu. No fundo, cada um faz a sua interpretação e como nós não memorizamos exatamente aquilo que vimos, mas sim as narrativas que criamos através daquilo que percecionamos através dos nossos sentidos, as histórias que recontamos podem não bater exatamente da mesma forma que as outras pessoas contam, sendo a mesma situação.


Foi o terceiro filme que Kurosawa fez com o seu amuleto da sorte, Toshirô Mifune, com quem viria a fazer nada mais nada menos que dezasseis filmes. E não se trata de filmes quaisquer, Mifune trabalharia em Kurosawa nos mais diversos clássicos como “Os Sete Samurais”, “Yojimbo – O Invencível” ou “Trono de Sangue”. Uma dupla de sucesso sem dúvida. “Rashômon” quase que é tratado como um jogo. Dão-nos o tabuleiro, temos as personagens para jogar como se de pinos se tratassem e o objetivo é descobrir o que é a verdade. Só há duas coisas das quais temos certeza. Um samurai e a sua mulher caminhavam pela floresta quando foram abordados por um bandido. A mulher foi abusada pelo bandido e no confronto entre o samurai e o bandido, o primeiro faleceu. No entanto, mesmo reunindo os intervenientes da história (o falecido também retorna) para recontar as histórias, as várias versões têm diversas variações que não permitem compreender com certeza o que realmente se passou. Além disto, existe outra camada, pois os recontos das histórias não são ditos pelas próprias personagens que dela tomaram parte. No início do filme, numa das aberturas mais lindíssimas do cinema em que vemos a chuva a cair (Kurosawa era exímio a capturar imagens de chuva que tipicamente melancólica, com ele parecia dar outro tom para além da tristeza, algo que não consigo explicar mas simplesmente sentir) sob um palácio completamente destruído (uma lembrança de um Japão que tinha sido arrasado por uma Guerra Mundial), um homem comum que viaja, procura refúgio da chuva nas ruínas desse palácio. Lá está um lenhador e um padre visivelmente absortos nos seus pensamentos e com um ar embasbacado. Eles acabaram de assistir a um julgamento completamente bizarro, aquele que é o centro de “Rashômon”. Se já duvidosas eram as histórias do bandido, da mulher e do samurai, então agora é que se complicaram, pois é a história de uma história, e apesar de ser contada por duas pessoas, estes dois homens não escapam à subjetividade da mente. Neste meio, nós somos o homem que acabou de chegar e de nada sabe do incidente, e com o que eles dizem, vamos procurar entender as coisas. Se é que é possível entender. “Quanto mais ouço, mais confuso estou” disse o homem. Nós sentimos o mesmo.


Vamos saltando entre a história original, a história do julgamento e as histórias contadas no julgamento e de nada podemos ter a certeza. Ou talvez haja pequenas pistas que nos indiquem o que realmente passou, desde a postura das personagens durante o julgamento à comparação de todas as histórias. Eu digo com certeza que não faço a mínima ideia daquilo que será a realidade nesta trama. Mas se há algo que eu sei, é que afirma a falha da existência humana. Nem sempre podemos confiar nos nossos sentidos. E se dos nossos não podemos confiar, então confiar no sentido dos outros ainda mais difícil será. É a compreensão de que não somos máquinas e estamos sujeitos ao erro. E esse erro diz mais de nós, dos nossos ideais e da nossa moral do que outra coisa qualquer. As personagens do filme vão dando o seu depoimento da forma que mais lhes convier. Da maneira que os fará ficar melhor perante o júri, ou perante aqueles a quem contam a história, no caso do lenhador. Ele próprio é um narrador no qual não podemos confiar cegamente. E para além deste comentário, vemos os sentimentos de Kurosawa perante a derrota japonesa na II Guerra Mundial. Após este rasto de destruição, há que abrir caminho para coisas novas. Largar os sentimentos de pena e procurar renascer, dar um mundo novo. Isto representado pelo bebé que aparece sozinho no palácio em ruínas.


“Rashômon” não representa apenas uma brilhante reflexão da psique humana. É também o cinema na sua forma mais inovadora. Mesmo tendo passado há 70 anos, e desde então o cinema ter percorrido tanto, é notável a forma como este filme está feito. Qualquer aspeto técnico é de louvar, mas a forma como Kurosawa impulsionou a forma de apresentar uma narrativa é algo que ainda hoje os cineastas devem fazer por (se o seu filme procurar ser narrativo claro). É emocionante, entramos num ziguezague moral em que nos questionamos constantemente para onde deveremos olhar como o correto. As sequências de ação são impressionantes, algo que Kurosawa mostraria ser ilustre criador. E ouvir Mifune a rir alto e a bom som é sempre bem-vindo! No final só fica a questão: O que é a Verdade?

Manuel Fernandes

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