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Retrato de uma Rapariga em Chamas: A Importância de Olhar


Previamente a ver este filme, conhecia Céline Sciamma por causa do seu filme “Bando de Raparigas”, que realizou em 2014. Neste, ela mostrou saber combinar bastante bem a arte visual com a arte musical, com resultados excelentes, como por exemplo, uma sequência do filme referido em que as raparigas, numa imagem “tingida” de tons de azul, dançam ao som de “Diamonds” da Rihanna. Não sendo eu um fã fervoroso de música pop, confesso que a forma como ela combinou estes elementos mexeu emocionalmente comigo e cativou-me bastante. Tendo isto em conta, e não tendo visto os outros dois trabalhos dela (“Naissance des pieuvres” e “Maria-Rapaz”), para além do quão bem falavam do filme, aquilo que mais me chocou quando comecei a ver o “Retrato de uma Rapariga em Chamas” foi a total ausência de música não-diegética durante todo a sua duração, pois ambicionava ver como ela iria combinar possivelmente música romântica do final do século XVIII com as imagens lindíssimas que ela conseguia criar. Mas não tive isso, algo que me desapontou inicialmente, mas que depois me provou ser uma atitude muito inteligente, pois nesta época, não havia obviamente aparelhos que pudessem reproduzir música automaticamente e sem haver um músico por perto, a vida só era possível em silêncio. Isto permite que sejamos transportados para o período em que as personagens vivem e que possamos “viver” como elas. Obriga a prestar outra atenção, pois sem ruído, direcionamos o pensamento para outros elementos. Devido às minhas expectativas iniciais poderem ter possivelmente tido algum efeito na minha visualização, decidi rever o filme, acabando por ter uma opinião bem mais favorável.

Não se trata de uma história de amor. Não é uma luta contra aqueles que se opõem a amores proibidos, escolher ver o filme somente através dessa faceta pode reduzi-lo. Trata-se de compreender o que diz o nosso olhar e como mostramos os nossos desejos. É sobre a relação do artista com a sua arte e como ele mostra a sua voz. E quem diz artista, diz qualquer pessoa que tenha uma voz e a queira usar. E por isso, não seria menos adequado que uma das protagonistas fosse uma pintora, contratada para pintar o retrato de uma jovem rapariga que está prometida a um nobre milanês. Marianne, a pintora, não foi a primeira escolha para este projeto, porém outro pintor não a conseguiu recriar, visto que Héloïse se recusou a posar para o retrato pois não deseja casar-se. De certa forma, a conclusão do retrato simboliza a entrega de Héloïse ao casamento, esta que é uma personagem misteriosa, que vivia reclusa do resto do mundo num convento, tendo apenas retornado a casa após o recente suicídio de sua irmã. A forma como estas duas personagens são apresentadas é bastante interessante. O filme inicia-se com várias jovens a pintar a modelo que posa para elas, trata-se de Marianne. Vemos várias formas de recriar o mesmo objeto e vemos as várias jovens a fitar a mesma pessoa com resultados diferentes nas telas, até que somos presenteados com Marianne que nos olha diretamente. O olhar é algo poderoso, através dele podemos transmitir exatamente o que desejamos e podemos também absorver o mundo à nossa volta a fim de responder com as nossas ideias, quer seja através de palavras ou através de outros meios como a pintura. Marianne olha para nós como quem nos quer explorar. Ela é o modelo naquela situação, mas ela também é uma artista e ela olha para a sua volta e examina muito bem, procurando as mais pequenas coisas, as mais ínfimas imperfeições e os mais belos defeitos. Já Héloïse não aparece na tela durante bastante tempo, sendo que apenas ouvimos outras personagens a falar dela. Cria-se um grande mistério à volta desta mulher, e mesmo quando vemos a sua própria pessoa pela primeira vez, ela aparece de uma forma fantasmagórica, vestida com um robe azul que lhe tapa o semblante. Ela corre em direção a um precipício, não porque ambiciona saltar, mas porque deseja correr, algo que esteve privada durante anos por estar no convento. Isto é quase uma metáfora da sua própria vida pois finalmente é livre de fazer aquilo que quer, mas está presa às suas obrigações, quase como se pudesse correr por onde quisesse, mas o seu caminho é cortado prematuramente. No entanto, o mistério que Héloïse é, não se dissipa mal a vemos, pois, os nossos olhos são os de Marianne, é através desta lente que temos acesso às belas imagens que compõem o filme. E em jeito de parêntesis, “belas imagens” são um eufemismo pois qualquer imagem é dotada de um deslumbre tal que seria possível pausar o filme e confundi-la com um quadro, tal e qual como em “Barry Lyndon” (falo de estilos de pintura distintos, porém).

As duas mulheres vão-se conhecendo, Marianne omite a sua verdadeira motivação e estuda Héloïse de uma forma exaustiva para que o retrato possa ser criado a tempo. Num momento bastante charmoso, Marianne destapa um cravo, tristemente escondido com um lençol branco, e toca para Héloïse um excerto de “As Quatro Estações” de Antonio Vivaldi, este evoca uma tempestade. Marianne engana-se ao tocar, tentando buscar aos confins da sua memória as notas corretas (de uma forma bastante sincera pois comete os erros e reinicia da maneira de quem está nervoso e procura fazer tudo de forma perfeita). Noutro momento, Marianne inadvertidamente queima o anterior retrato feito de Héloïse. Pode ser algo que nos deixa a questionar o porquê da sua inclusão, mas torna-se evidente quando nos relembramos das palavras “Amor é fogo que arde sem se ver” de Luís Vaz de Camões ou “Tão impossível como tentar apagar o lume com neve é tentar apagar o fogo da paixão com palavras” de William Shakespeare que muito bem conheciam o simbolismo que o fogo pode ter. Estas ideias, entre outras, são constantemente espalhadas por todo o filme e funcionam como prenúncio do destino das personagens principais. Eventualmente, Marianne revela qual a sua verdadeira função e mostra o trabalho final a Héloïse. Infelizmente, a modelo odeia o resultado, Marianne justifica a forma como pintou com “Há regras, convenções, ideias”, Héloïse interpela “Quer dizer que não há vida? Não há presença?”. A ausência da verdade na arte pode ser o maior inimigo dos seus criadores e Héloïse conseguiu perceber que quem pintou aquilo não foi Marianne mas sim os padrões artísticos que lhes eram contemporâneos.

Apesar da personagem mais misteriosa ser Héloïse, esta sente-se intrigada com Marianne e por isso aceita posar para esta. Elas as duas podem assim ser mais honestas uma com a outra e mostrar as suas pessoas sem se esconderam por trás de motivações ocultas ou outras ânsias. Uma cena que tão brilhantemente ilustra o fogo que antes nos falava do futuro, é aquela em que elas vão para um ajuntamento à volta da fogueira (que confesso não saber de que se trata) e no momento em que Marianne contempla Héloïse, o vestido azul é apanhado por uma pequena labareda. Em vez de fugir e tentar apagar o fogo, Héloïse devolve o olhar a Marianne. Não nos podemos esquecer que as imagens que vemos são as criações da mente de Marianne, é ela que relembra esta história e tem a amabilidade de nos contar, daí que as estas sejam tão belas e Héloïse mantenha uma figura austera enquanto em chamas, é deste modo que Marianne prefere recordar. E Sciamma não mostrou ter apenas aptidão na criação de imagens belas, na inclusão precisa de música e na transformação brilhante das suas atrizes, pois mal Héloïse colapsa após entender que seu vestido se encontra a arder, Marianne corre em sua direção e um corte brilhante transporta-nos de uma forma bastante subtil para um desfiladeiro em que as duas mulheres se ajudam mutuamente a descer. A montagem é capaz de ser das tarefas mais difíceis do cinema. Onde cortar? Não há muitas regras que digam onde cortar de uma forma 100% eficaz, mas sem dúvida que este faz parte do lote que também inclui o corte entre um osso e uma nave espacial em “2001: Odisseia no Espaço”.

Elas iniciam uma relação ardente e partilham juntas os mais íntimos momentos. O retrato está terminado e desta vez ele capta a verdadeira forma como Marianne olha para Héloïse. A honestidade e a paixão têm os mais belos resultados. Mas durante estes maravilhosos momentos, Marianne imagina ver Héloïse quase como um fantasma que enverga o seu futuro vestido de casamento, um bocado a relembrar as mulheres em “Persona” que vestidas de branca também se assemelhavam a figuras espectrais. É um aviso de que por maior que sejam o desejo e a paixão, o destino de Héloïse está selado e não há nada para Marianne senão ter em mente que eventualmente aquela relação irá ter o seu fim selado com a conclusão do retrato.


Anos depois, numa galeria de arte, uma pintura de Marianne ganha alguma atenção. Trata-se de uma representação de Eurídice e Orfeu e se repararmos no pormenor, Eurídice encontra-se vestida de branco, de uma forma semelhante ao vestido de noiva de Héloïse. Na mesma galeria, um retrato de Héloïse encontra-se exposto, ela com sua filha. Segura um livro na página 28, a mesma página em que Marianne desenhou o seu auto-retrato para que Héloïse não a esquecesse. Nestes dois quadros está a memória que estas duas mulheres têm uma da outra. A última vez que Marianne viu Héloïse foi num concerto. Ela olha em frente e vê Héloïse a dirigir-se para o seu lugar, mas “Ela não me viu”. A peça tocada é o mesmo excerto de Vivaldi que Marianne se esforçou por tocar no pequeno cravo. Um close-up brilhante vai-nos aproximando de Héloïse que não vê mesmo Marianne mas age como se após tantos anos a tentar esquecê-la, tivesse finalmente tido a possibilidade de por um segundo poder voltar a almejar por um beijo. A música traz à sua pele todos os momentos que tiveram juntas. A cor do seu cabelo, as noites que partilharam, os fugazes olhares que pareciam demorar séculos e que tanto faziam o coração bater incessantemente. Tudo numa peça de música. A memória funciona de maneiras que desconhecemos, mas o seu poder é impressionante. Agora, será que as coisas aconteceram desta mesma forma? Temos que acreditar nas palavras de Marianne e no quadro que ela criou para nós. O ano passado foi muito bom para o cinema, sem dúvida.


Manuel Fernandes

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