top of page
Foto do escritorunderscop3

The House that Jack Built: Um Impacto Quase Ilegal



Quem conhece Lars von Trier já espera um filme repleto de violência extrema a nível físico e psicológico. É literalmente impossível alguém ficar indiferente a qualquer projeto do diretor dinamarquês. Pelo menos os que eu vi: Anticristo, os dois volumes de Ninfomaníaca, Melancholia e Dogville, são filmes que permanecerão na minha categoria dos inesquecíveis. Contudo, admito que não os posso recomendar de forma sensata, porque o espectador vai sentir incômodo e repulsa face a muitos elementos.


Em “The House that Jack Built” a experiência segue por direções imprevisíveis, pois existe uma crueldade grotesca em muitos momentos da narrativa que já levaram pessoas a saírem das salas de cinema. Este filme, que para já é o último lançado de Lars von Trier, é uma compilação dos pontos mais fortes das suas obras anteriores, portanto considero ser o mais completo, até porque é o que engloba mais informação para analisar no mesmo tempo de tela face aos restantes. Antes de me dedicar ao escrutínio do filme, (que digo desde já que não vai ser uma análise completa tendo em conta a quantidade enorme de temas que aborda), aviso que não é para qualquer um, não só em termos de impacto ao vê-lo, mas também no que toca à formulação de uma opinião final. Isto porque divide bastante os críticos, pois já li textos que colocam este filme como o melhor do realizador, e outros que ditam que é desnecessário para o mundo do cinema.


Este filme segue a estrutura narrativa dos anteriores, ou seja, em forma de capítulos, neste caso são cinco em que cada um corresponde a uma vítima que morreu nas mãos de Jack. Estes cinco casos são escolhidos de forma aleatória por parte de Jack (Matt Dillon) dentro de um leque de 60 pessoas que já matou e explica-os numa conversa que acompanha o filme até ao fim em tons de narração com uma personagem chamada Verge (Bruno Ganz). Este último acaba por ser Virgílio, autor de “Eneida” e citado na “Divina Comédia” de Dante, que funciona como um tipo de antítese, pois ele é a visão crítica do próprio filme ao questionar todas as ações de Jack. Os crimes apresentados acompanham 12 anos da vida do protagonista que possui TOC (transtorno obsessivo compulsivo) em que as caraterísticas desta condição são expostas de forma declarada por Jack à medida que apresenta as ilegalidades que cometeu. Em relação às suas vítimas, o próprio não demonstra ódio, nem possui alguma característica visivelmente monstruosa, a não ser a falta de empatia. Aos olhos de pessoas próximas, ele passaria por um indivíduo comum, recluso, e sem família. As mortes começam quase por acidente, e depois repetem-se como um vício incontrolável. Jack durante o tempo de tela só ataca mulheres e acredita que elas são culpadas pelos atos dele. Uma delas é atacada por reclamar demais, a outra, por ser ignorante, e uma terceira, pela sua ingenuidade. Jack no fundo pune as pessoas pelas suas falhas, e acredita que é ajudado por Deus, que lhe permite escapar dos crimes com impressionante facilidade. Um exemplo disso foi quando transportou um corpo amarrado ao seu carro que deixou um rasto de sangue pelas estradas, e do nada começa uma chuva torrencial e Jack entendeu isso como uma dádiva de Deus. Aliás, o próprio explica a sua necessidade de matar comparando-a com uma sombra que aparece quando se caminha numa rua iluminada durante a noite.


Por outro lado, este assassino em série deseja construir a própria casa, citada no título. Entretanto, assim como o ciclo de mortes nunca é concluído, a casa também não se termina. É sempre preciso desconstruir e recomeçar, numa metáfora à compulsão dos ataques. O argumento dedica muito tempo à comparação entre os atos de Jack e as obras de arte clássicas. Se a modificação da natureza para criar algo esteticamente agradável (catedrais, pinturas, livros) é considerada um gesto artístico, então por que as fotos tiradas dos cadáveres não seriam igualmente artísticas? Esta questão é muitas vezes analisada durante a conversa entre Jack e Verge. A lógica é levada ao extremo como forma de provocação, mas serve para discutir a banalização do mal.


O percurso realista de Jack possui muito simbolismo e numa das minhas transições favoritas ele ilustra a facilidade com que se tira a vida de uma pessoa, porque os vizinhos não se importam mais uns com os outros, as famílias distanciaram-se, a polícia não tem real interesse em desvendar casos. O mundo retratado na história é inconsequente, indiferente. Jack quase que faz para ser apanhado, mas a sociedade não está suficientemente atenta para se preocupar com atos criminosos de uma pessoa só.


Nos intervalos da narração das suas ações, Trier mistura clipes do pianista Glenn Gould a tocar freneticamente com, por exemplo, imagens estilo National Geographic ou imagens fixas, sobretudo de quadros da grande História da Arte, ou reflexões sobre arquitetura, sempre com o propósito de produzir analogias entre os crimes que o protagonista executa com obras de arte. Esta peculiaridade é habilidosa e atraente. Quase apetece dizer que é muito mais interessante do que os próprios acontecimentos.


Lá no fundo e criado um inferno social, em que qualquer horizonte positivo desapareceu. O filme quer soar cínico, quer soar insensível às dores do mundo, mas constrói-se e justifica-se como uma denúncia da insensibilidade, da ausência de solidariedade no mundo. Uma das vítimas que grita desesperada na janela e ninguém na cidade a acode. Este mundo parece ser construído para o sofrimento das vítimas e também do protagonista. O sofrimento cru é a imagem de marca deste filme e funciona como uma estratégia de denúncia, não de prazer perverso nem da celebração da morte. Nesta visão negativa, só há transcendência como inferno, só há Deus como cúmplice do carrasco (como mostra a cena da chuva forte que falei anteriormente).


The House that Jack Built não é só uma história acerca de uma pessoa perturbada, nem do nascimento de um assassino em série, e muito menos é apenas uma apresentação gratuita de horror nojento. Esta obra transcende tudo isso e eleva-se para um nível de reflexão muito superior. Mediante opiniões que li em certas plataformas percebi que há pessoas que interpretaram o filme apenas pelo grafismo, e não pelos alicerces que justificam o estilo agressivo e cruel do filme. Considero que poderia ter abordado este filme doutra forma, em que explicava cada um dos incidentes e o que significam, mas iria alongar-me demais, portanto espero que os cinéfilos mais exigentes me perdoem por ter feito uma análise mais simplista. Gostaria de recomendar este filme a toda a gente, todavia não o posso fazer devido às caraterísticas inerentes à apresentação da narrativa, mas se procuram algo 100 % impactante possuem aqui o petisco perfeito. Ah e só mais uma coisa, a tal casa que Jack quer construir é provavelmente das surpresas mais originais que assisti no mundo do cinema!


Diogo Ribeiro

Comments


bottom of page