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The Last Black Man in San Francisco: A Minha Casa



O ano de 2019 foi surpreendente para o cinema por ter trazido tantos filmes de elevada qualidade. Um dos que mais me surpreendeu e mais me cativou foi a estreia de Joe Talbot como realizador de longas-metragens, “The Last Black Man in san Francisco” que co-escreveu com o seu amigo Jimmie Fails. A história é uma versão fictícia da própria vida de Jimmie Fails, daí que seja tão adequado que a personagem que interpreta tenha o seu próprio. E tão impressionante quanto o filme foi a história da sua produção. Talbot e Fails planearam o filme ainda como adolescentes, e em 2015 criaram uma campanha Kickstarter para angariar fundos para produzir o filme. Com os fundos que conseguiriam angariar, criaram primeiro uma curta-metragem, “American Paradise” também com Jimme Fails a atuar. A curta chegou ao festival de cinema independente de Sundance, e a Plan B Entertainement, empresa cujo dono é Brad Pitt pegou no projeto dos dois, juntando-se depois a já impressionante A24.


Há uma certa melancolia por todo o filme. Não só pelas cores outonais, em que castanho e amarelo parecem ser o padrão principal, mas também pelos semblantes dos dois protagonistas, Jimmie Fails e Montgomery Allen. Eles os dois têm a qualidade dos atores que Robert Bresson (“Peregrinação Exemplar”, “Fugiu um Condenado à Morte”) selecionava para os seus atores, o essencial não era saberem atuar, mas sim a sua própria persona transpirar o sentimento que ele pretendia que demonstrassem ao longo do filme, podendo ser o mais natural possível. Os dois atores que interpretam os protagonistas do filme transmitem uma tristeza genuína como se faltasse algo nas nossas vidas. Basta olhar para eles um segundo que sentimos isso. E de facto, falta. Jimmie Fails, a cada quinzena, faz o luto de uma casa que já não é sua. Ele vivia numa casa com estilo Victoriano em São Francisco. Esta pertencia ao seu avô e ele até afirma com toda a certeza que o seu avô sozinho a construiu em 1946, apesar da insistência de muitos de que a casa terá sido construída a meio do século XIX. Infelizmente, a casa passou foi retirado à sua família após a morte do avô de Jimmie. Ele vai, de 15 em 15 dias, a esta casa que já não lhe pertence para a poder arranjar, quer seja jardinagem, pintura, renovação das estruturas, algo que deixa muito apreensivos os atuais donos. Não vai sozinho, leva consigo o seu melhor amigo, Mont, um homem de imensa sensibilidade artístico, contrariamente ao que a sua profissão de peixeiro daria a entender. E os primeiros minutos mostram-nos exatamente aquilo que vai se a essência do filme, algo que eu acho que muitos dos grandes filmes se preocupam em fazer. Vemos o bairro onde Jimmie e Mont vivem, a comunidade que lá habita. Pobres com poucas habilitações literárias e cheia de violência, um homem “louco” prega todas as maleitas deste habitat em São Francisco. Os nossos protagonistas esperam pelo autocarro que nunca mais chega, parece algo habitual neste filme, os autocarros existem e por vezes Jimmie e Mont até viajam de autocarro onde conhecem personagens que dão cor à cidade, mas na maioria das vezes são só uma miragem, por isso um skate terá que servir para os dois. Os dois entrem “a bordo” do skate e vemos Mont a colocar as suas mãos em Jimmie, sem qualquer problema, são amigos, não deveria haver quaisquer problemas desses entre dois amigos.


E uma sequência musical traz-nos desde a parte mais pobre deste mundo que é São Francisco, avançando pela classe média até chegar à casa numa zona rica. Esta casa não é uma qualquer, destaca-se pelo seu estilo arcaico, pela sua altura majestosa e pela sua aparência quase humana (devo esta última descrição a um bom amigo). A casa é por isso um símbolo ou até outra personagem. É um símbolo daquilo que procuramos e que há muitos anos perdemos. A nossa identidade? Talvez o nosso passado e da nossa família? Para Jimmie será isso e talvez muito mais. E para Mont? Incessantemente segue o seu amigo nestas jornadas loucas, silencioso e observador. Um amigo que estará lá para o melhor e para o pior.


E que mais dizer do estilo de Joe Talbot? Parece combinar o melhor da cultura hip hop e do cinema clássico. Muitas vezes vemos as personagens em close-ups extremos, reminiscentes do estilo de Ingmar Bergman, em que sem estarem cientes da existência de uma câmara na sua frente, “falam” imenso e dizem tudo aquilo que nós precisamos de saber. A música é surpreendente, combinar a música pop, folk, indie, hip hop (tão bom que foi ouvir Joni Mitchell no meio deste grande filme) com as composições mais tradicionais e instrumentais do cinema, criou de uma forma excelente o tom e evidenciou as sensações que as próprias personagens sentem e que nós mesmo sentimos, é formidável. Não é um estudo simples do mundano, mas sim na beleza desta cidade e na sua decadência em que por trás de coisas belas se esconde o nosso passado, no entanto, o chamado “lixo” é de uma beleza brutal para muitos que nele vêm a sua própria pessoa. Não podemos odiar algo se não o amarmos, pois não? Já dizia Jimmie Fails. É também uma ode à amizade masculina, que por vezes tem que se esconder atrás de facetas duras e pouco emocionais para evitar cair na chacota e na desonra que é ser o mais fraco. Fossem todos como Jimmie e Mont, o quão bom seria.


Manuel Fernandes

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