top of page
Foto do escritorunderscop3

Uma Separação: O porquê do realismo



O cinema foi muitas vezes usado como tentativa de exploração do imaginário, fantasia e daquilo que não somos… um escape à realidade, portanto. Mas se por um lado, haja quem tente trazer à tela as aventuras que a mente ousa gozar, também é verdade que existem aqueles que tentam captar de forma mais fidedigna possível o mundo nu e cru como o vivemos. Não querendo focar a argumentação no que é possível fazer com a 7ª arte, afirmo somente a possibilidade de a câmara poder captar vislumbres do que os nossos sentidos acreditam ser a realidade.

Creio que foi precisamente isso que Asghar Farhadi atingiu com “Uma Separação”. É-nos apresentados o casal Nader e Simin. Ela deseja divorciar-se pois quer abandonar o país para que Termeh, a filha, tenha uma vida melhor. Nader contrapõe o argumento pois, o seu pai que padece de Doença de Alzheimer precisa dos seus cuidados. Farhadi não nos apresenta este conflito de uma forma qualquer, Nader e Simin olham diretamente para a câmara. Esta representaria o olhar do juiz do caso mas nunca o vemos, apenas a sua voz. De certa forma, a audiência torna-se naquele incumbido de julgar todas as situações que se seguirão e não será uma tarefa fácil pois, progressivamente os dilemas morais vão-se adensando e complicando.

Focando nos pontos essenciais do enredo de forma sucinta, para cuidar do seu pai enquanto trabalha, Nader contrata Razieh que além disso tratará da lide da casa. Razieh vem acompanhada da sua filha, Somayeh, para o emprego mas quando o trabalho exige tarefas como trocar as calças do pai de Nader, Razieh pede para deixar o emprego pois é devota religiosa e essas tarefas estar-lhe-ão proibidas (para além de nos ser revelado numa conversa com a explicadora de Termeh que Razieh está grávida). No entanto, propõe que Nader ofereça o emprego ao seu marido, Hojjat, com a condição que este não saiba que ela trabalhou na casa de Nader sem o conhecimento do marido. Nader aceita mas para sua surpresa, Hojjat não pôde trabalhar no seu primeiro dia por estar retido pelos credores e Razieh substituiu-o. No decorrer do trabalho, Razieh repara que o pai de Nader saiu de casa e tem que o buscar à rua. Nesse mesmo dia, Nader e Termeh chegam a casa e Razieh e Somayeh não se encontram em lado algum e além disso, o pai de Nader está no seu quarto inconsciente com a mão amarrada à cabeceira da cama. Para piorar a situação, Nader descobre que algum dinheiro, que mantinha guardado, desapareceu. Razieh volta à casa e Nader confronta-a, acabando por a mandar embora. Devido aos seus ideais religiosos, decide continuar a discussão pois deseja provar que não foi ela quem levou o dinheiro. Isto enfurece Nader ainda mais que acaba por a mandar embora, empurrando-a pela porta. Sabemos que Razieh caiu das escadas (sem alguma vez ver como aconteceu) e mais tarde é descoberto que está no hospital e teve um aborto. Destes acontecimentos resulta uma batalha legal entre Nader e Razieh e Hojjat. Se se provar que Nader sabia da gravidez de Razieh e a empurrou então terá sido homicídio.

Para aqueles que viram o filme, sabem que há mais eventos ou simples ideias que acompanham e complicam o caso, contudo o essencial deste filme não é, na minha opinião, uma somente resolução de um percurso legal, mas sim evidenciar o espetro da natureza humana. É muito fácil catalogar as pessoas como boas ou más e é extremamente tentador separar o mundo em opostos semelhantes a linhas paralelas. Mas fazer isso, seria cair na falácia de que todas as outras pessoas não terão a mesma profundidade, conhecimento ou sentimento que nós próprio. Todos os dias nos cruzamos com centenas de pessoas que vemos como unidimensionais, mas Farhadi compreende perfeitamente que isso não é a realidade. Oferece nomes às personagens, não apenas como vinheta mas sim como real identidade. Evidencia os seus traços de personalidade quer sejam elogiosos ou defeituosos. Realça as motivações de todas as personagens, entre as quais destaco: Nader não quer ser preso pois dele dependem o seu pai e a sua filha; Simin quer ver o conflito resolvido pois vê o efeito que este tem em Termeh; Hojjat precisa de dinheiro pois está desempregado e precisa de pagar aos credores, além de que sofreu consequentes derrotas legais e pessoais no passado e (de forma perigosa para as outras personagens) acha que já não tem nada a perder; Razieh não tem a certeza se o que causou o aborto foi um atropelamento do qual foi vítima ou a discussão com Nader e a sua clara devoção religiosa tem importantes repercussões no seu comportamento. Não nos é pintado um quadro simples com cores primárias… todo o espetro colorido é exposto e nele toda a condição humana. Todos temos falhas e qualidades por mais perfeitos ou até inúteis que nos achemos. É neste sentido que se torna importante que também exista cinema realista dotado não só de uma capacidade imparcial de visualização do mundo mas também de génio que foi sem dúvida o que Asghar Farhadi alcançou com “Uma Separação”. É provocador, é estimulante, estamos constantemente a apoiar uma personagem quando passamos a simpatizar com outra. É o cinema como metrónomo em constante movimento.

No final, o ciclo termina com a consumação daquilo que o início prometia. Nader e Simin divorciam-se e cabe a Termeh decidir com quem vai ficar. Acabamos por não saber a sua decisão. Também não percebemos como realmente terminou a disputa que tanta parte do filme ocupou. Cabe mais uma vez ao espectador decidir aquilo que acredita ser o final mais adequado. E uma questão importante também não é respondida neste final… Quem levou o dinheiro de Nader? A quantia que foi uma das grandes achas desta fogueira? Nunca é explicitamente mostrado, mas após uma segunda visualização confesso que na minha mente surge o nome de Simin. Mas porque “roubaria” Nader? Talvez a inocente cena em que os homens das mudanças exigem serem pagos por outro andar pelo transporte do piano não seja tão inocente quanto isso e encontrava-se lá para nos mostrar Simin a pegar em algum dinheiro de Nader para lhes pagar. É assim o mundo real, coisas importantes por vezes escapam o nosso olhar!


Manuel Fernandes


34 visualizações0 comentário

Comentários


bottom of page