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Veludo Azul: Em Sonhos



As primeiras imagens dos filmes são muitíssimo importantes. David Lynch, um dos mais alternativos realizadores que trabalhou em Hollywood e responsável pelos pesadelos que são “No Céu Tudo É Perfeito”, “Twin Peaks”, “Mulholland Drive”, “Inland Empire” e muitos outros trabalhos únicos na indústria, sabe bem como compor imagens e como mexer com a nossa mente. Melhor ainda, ele faz através da manipulação daquilo que é o sub-consciente. Por isso, como é que são as primeiras imagens naquilo que eu considero a sua obra-prima (peço desculpa aos fãs de “Mulholland Drive”)? Vemos um manto de veludo azul, acompanhado de uma música que nos parece alertar dos perigos que aí vêm. Quase assumimos que iremos ver um filme de terror. E de repente, uma cerca branca com rosas vermelhas irrompe em cena, com um sol brilhante a iluminar e a música “Blue Velvet” de Bobby Vinton a ajudar à génese de um ambiente de segurança. Estamos num bairro seguro, o sonho americano. As pessoas estão todas felizes, os bombeiros a passar acenam como se fossem os nossos maiores amigos. E um homem rega as flores do seu quintal enquanto a sua mulher está na sala a ver um film-noir. Subitamente, começa a agarrar-se ao seu pescoço, parece estar a ter um ataque cardíaco e ninguém o ajuda. O único ser que se aproxima é o seu cão (assumo que seja dele) e em vez de tentar ajudar o dono da forma que os animais fazem quando vêm os seus donos em aflição ou perigo, apenas começa a tentar morder a água que continua a brotar da mangueira. A cena continua e continuamos a ver o seu quintal, desta vez, não as belas flores que adornam os canteiros, mas sim a terra cheia de insetos, e onde domina a composição. A parte mais feia que está escondida dos nossos olhos. E termina o prelúdio e começa a ação principal. O que podemos retirar daqui? Primeiro que tal como numa peça de teatro em que as primeiras coisas que vemos são o pano a tapar o palco, aquilo que iremos ver não é real. É uma encenação, ou melhor que isso, é tudo um sonho. A imaginação a tomar conta das imagens e tudo aquilo que teremos é um exagero do mundo real, que é invadido pela dimensão onírica onde nada parece fazer sentido a não ser que olhemos com profundidade para as coisas, a fim de perceber que os nossos medos, motivações e pensamentos mais obscuros estão escondidos nestas sequências bizarras e assustadoras.


“Ela usava veludo azul, Mais azul que o veludo era a noite, Mais suave que cetim era a luz, Das estrelas” são estas as primeiras letras da canção de Bobby Vinton que Dorothy Vallens (Isabella Rossellini) canta no bar, exibindo um belo vestido, sob uma luz azul e atrás de si um pano vermelho (que relembra os quartos assustadores em “Twin Peaks” onde os nossos maiores medos se tornam realidade). A letra, juntamente com esta composição de imagem, parece indiciar que a nossa visão relativamente a alguém pode ser exagerada pelas nossas próprias fantasias. A mulher é tão bela que o vestido que usava era ainda mais azul que a noite e mais suave do que as estrelas. Nós acreditamos que as coisas são belas se assim quisermos, não porque realmente são. E é com esta mentalidade que David Lynch orquestrou este filme, onde inicialmente as coisas parecem ser lindíssimas, no entanto, escondem a violência e a depravação humana. Tudo em “Veludo Azul” parece ter um significado escondido. Sempre que parecemos ter alguma noção do que irá acontecer num momento, algo inesperado (e inesperado de uma maneira impressionante) acontece e, de uma forma abrupta, as noções que fomos criando com as anteriores imagens começam a desmaterializar-se para dar origem a algo novo. Tudo sob uma aura cuja luminosidade se vai reduzindo ao longo do tempo, o escuro vai tomando a liderança neste confronto entre opostos morais. Se no início, as coisas parecem ser o céu apaixonante que a classe trabalhadora sonha por, à medida que vamos avançando, este pequeno universo vai-se aproximando mais daquilo que é o tormento da humanidade. Há uma distorção da realidade figurativamente e literalmente no filme. Talvez o melhor exemplo disto seja a famosa sequência em que o implacável, maldito, tarado e pior que tudo desumano Frank (Dennis Hopper) descobre o jovem Jeffrey (Kyle MacLachlan), que vai conduzindo a sua pequena investigação com a ajuda de Sandy Williams (Laura Dern), após este ter feito uma visita noturna a Dorothy Vallens, e decide levá-lo numa viagem alucinante que espero que ninguém tenha o terrível prazer de fazer parte. Ao menos somos recompensados pela performance de Dean Stockwell que começa a fazer voz-off durante a canção “In Dreams” de Roy Orbison, à medida que as outras personagens vão pintando um excêntrico quadro renascentista. Parece ser a sequência que melhor nos relembra aquilo que é a essência deste filme, estamos em sonhos, daí que não seja tão esquisito que num segundo Frank está a gritar e logo a seguir, ele e todos os outros desapareçam da cena.


Não só existe uma variação tonal, em que apesar das várias tentativas em retornar ao mundo colorido de arcos-íris, a tela é dominada pelos detetives e horrores quase sobrenaturais, como existe uma certa discordância daquilo que seria o natural. Os diálogos por vezes parecem demasiado alegres e com uma simpatia excessiva quando estamos com as pessoas ditas normais, mas quando o submundo de Frank está em vogue, tudo parece mais genuíno. Como se no meio desta forma de se tentar ser correto se escondesse algo podre que ninguém quer ver. Assim, estamos perante um trabalho brilhante que revela as capacidades do cinema em criar histórias completamente bizarras que se adotarmos uma visão superficial, não conseguiremos perceber as partes mais complexas que David Lynch quis mostrar neste seu trabalho. Está cheio de simbolismos e reflexões que deixariam Sigmund Freud orgulhoso por ver como a mente humana opera no seu íntimo.


Manuel Fernandes

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